A tradução macroeconômica da preocupação do professor Lisboa pode ser vista por meio da evolução recente da poupança do governo. Como sabemos, a poupança é sempre igual ao investimento, ou seja: Poupança Privada + Poupança do Governo + Poupança Externa = Investimento. Nesse sentido, pode-se observar na tabela abaixo que a deterioração da poupança do governo foi fundamental para diminuir os investimentos, os empregos e a esperança dos brasileiros, que o presidente Bolsonaro prometeu resgatar.
Essa deterioração teve forte contribuição do governo federal, considerando que as despesas primárias aumentaram de 15,1% para 19,4% do PIB e as renúncias tributárias saltaram de 2,0% para 4,5% do PIB entre 2003 e 2015. Isso significou 4,3% do PIB de aumento de despesa primária e 2,5% do PIB de potencial diminuição de receitas, considerando que não se tem notícias de estudos que mostrem a efetividade das renúncias tributárias concedidas, gerando uma perda fiscal de 6,8% do PIB.
Como os investimentos federais foram em torno de 1% do PIB nesses anos, pode-se dizer que o governo federal gerou um buraco fiscal de 5,8% do PIB entre 2003 e 2015 que deveria ser coberto nos anos subsequentes. Essa foi a herança ‘maldita’ assumida pela equipe econômica no governo Temer.
O teto do gasto público em 2016 explicitou o buraco fiscal e prometeu que a cobertura viria pelo lado das despesas, contribuindo para ancorar as expectativas e reduzir as taxas de juros curtas e longas. Contudo, do ponto de vista contábil, o teto serviu apenas para segurar o crescimento das despesas primárias e reduzir o nível de investimento público para cerca de 0,5% do PIB, levando a poupança pública para -5,3% do PIB entre 2016 e 2019, explicitando que há ainda um longo caminho a percorrer.
Reformas estruturais foram feitas nos subsídios financeiros, creditícios e na previdência, com efeitos financeiros vultosos a ser obtidos apenas ao longo dos próximos anos. Trata-se, portanto, de uma simples e brilhante engenhosidade que leva a um ajuste lento, mas ancorando as expectativas à medida que fundamenta as crenças de que as reformas vão continuar e de que haverá saúde financeira e sustentabilidade das contas públicas no futuro. É preciso ter alinhamento contínuo e uníssono entre o Palácio do Planalto, a equipe econômica e o Congresso Nacional para que essas crenças não sejam abaladas.
Todavia, quando os sinais do Planalto são no sentido de que existirão novas despesas obrigatórias e investimentos públicos, sem clareza de que outras despesas obrigatórias serão diminuídas, considerando também o buraco fiscal e o atual nível da carga tributária, fica difícil não acreditar que o necessário ajuste poderá vir por um choque inflacionário, ainda mais quando há uma pandemia que só aumentou o tamanho desse buraco.
Essa é a preocupação do professor Lisboa para 2021 em diante — e ele está certo. Se o Planalto não enfrentar de frente o desafio de recuperar a poupança pública, a prosperidade ficará na promesssa, e o País terá que enfrentar aquele dragão odioso conhecido dos brasileiros com mais de 40 anos: a inflação. Esta sim, tira dos pobres para dar aos ricos.
Alexandre Manoel é economista do IPEA e ex-secretário dos ministérios da Fazenda e da Economia.