“Neve cor-de-rosa. Vivi para ver isso,” diz Martha, contemplando pela janela do hospital os flocos coloridos que flutuam na noite. Em conversa com Ingrid, uma velha amiga que veio lhe visitar, Martha explica que essa coloração estranha é resultado das mudanças climáticas.
Bom, não é bem assim…
O tom róseo é causado por uma alga e não aparece quando os flocos ainda estão caindo. A alga só muda de cor no chão, sob a luz do sol, e é isso que pode agravar os efeitos do aquecimento global: geleiras rosadas derretem mais rápido, pois absorvem mais calor solar do que as brancas.
Enfim, que importa? Ninguém vai ver um filme de Pedro Almodóvar em busca de informação científica precisa.
Em O Quarto ao Lado (The Room Next Door), em cartaz nos cinemas, a neve (branca ou rosada) vem carregada de melancolia.
Martha está internada para tratar um câncer cervical, e o tratamento não está dando resultado. É com ironia amarga que ela diz que viveu para ver a neve rosada: está ciente de que não terá muito tempo para ver novas maravilhas.
Baseado em um romance da americana Sigrid Nunez, O Quarto ao Lado é o primeiro longa do diretor espanhol falado em inglês. Para tanto, Almodóvar juntou duas excelentes atrizes – a inglesa Tilda Swinton e a americana Julianne Moore – e tirou o melhor delas.
Tilda – que já trabalhara com Almodóvar no curta A Voz Humana – vive Martha, experiente repórter de guerra. Cobrindo conflitos na Bósnia e no Iraque, ela aprendeu a respeitar a morte.
Martha despreza as convenções e cautelas que cercam sua doença. Não consegue compreender porque os médicos evitam palavras como “incurável” e “terminal”.
O que lhe mete medo não é tanto a morte em si, mas a dor e a degradação física que a precedem. E é por isso que ela decide comprar, na dark web, uma “pílula do suicídio”.
Martha só não quer estar completamente só nas horas finais. Por sorte, Ingrid está de volta a Nova York depois de anos vivendo em Paris.
Ingrid hesita quando Martha lhe faz a proposta sinistra: quer sua companhia na casa alugada onde pretende tomar a pílula letal. Mas Ingrid é um espírito compassivo. Não pode abandonar uma amiga doente.
A narrativa padece de certa rigidez nas sequências iniciais, sobretudo quando Martha conta a Ingrid sobre sua relação difícil com a filha que teve na adolescência.
Ao que parece, Ingrid nunca ouvira a história toda antes. No entanto, fica a impressão de que as duas não estão realmente conversando entre si: artificial, o diálogo serve para explicar as coisas ao espectador – e para apresentar cenas do passado.
É quando as amigas chegam à casa com janelões para o bosque que o filme realmente ganha tração. E uma boa dose de suspense, pois não há um dia determinado para o suicídio. Martha diz que vai dormir com a porta sempre aberta. Na manhã em que estiver fechada, Ingrid saberá que sua amiga está morta.
Na casa, a amizade antiga se revitaliza. As ex-colegas veem filmes antigos e conversam muito. Ingrid lamenta a “vida reduzida” que a doença lhe impõe: debilitada, já não consegue mais escrever nem se concentrar na leitura (encontramos um sentimento parecido na carta em que o poeta Antonio Cicero explicou aos amigos suas razões para optar pela eutanásia).
A delicada relação entre as protagonistas em seu confortável recesso no bosque é o centro do filme. Os demais personagens quase desaparecem nas cores vivas da cenografia.
Damian (John Turturro), um escritor obcecado com as mudanças climáticas, serve apenas como uma espécie de contraste escuro para a precária luz que as amigas compartilham. Ingrid recusa a visão de um futuro sem esperança que Damian lhe apresenta. “Há várias maneiras de viver dentro de uma tragédia,” diz.
Cineasta que nunca foi tímido no melodrama, Almodóvar aqui se mostra mais sóbrio, mas sem perder a intensidade que marca suas melhores realizações. Aliás, o mesmo já se podia dizer de Dor e Glória, filme que também trata da iminência da morte.
O Quarto ao Lado é um filme invernal. Não é por acaso que, em três momentos distintos, os personagens lembram as últimas frases do conto Os Mortos, de James Joyce, no qual se descreve a neve (branca, não rosa) que cai, suave, “sobre os vivos e os mortos”.
Almodóvar demonstra que o inverno da vida não precisa ser frio. E que talvez nem a morte precise ser mórbida.