Na semana passada, fiz um pequeno texto sobre a pichação em frente à casa de Jô Soares.

A frase — anônima e covarde, dado seu conteúdo — parecia incitar a morte do apresentador apenas porque o pichador (assim como milhões de brasileiros) ficou furioso com a entrevista que Jô fez com aquela que é, possivelmente, a presidente mais impopular da História do País.

Não costumo analisar os comentários que os leitores generosamente fazem neste blog, mas sou obrigado a abrir uma exceção. A causa é justa.

Dizer que a entrevista foi horrorosa, inexplicável, ‘pura levantada de bola’ e antijornalismo é redundante: a maioria dos brasileiros pensantes pode concordar confortavelmente com este diagnóstico.

Outros disseram que a frase ‘não foi uma ameaça, apenas representava um desejo’. Em meio à impopularidade da atual Presidente, e dado que a pichação foi apócrifa, me pergunto como estes leitores podem ter tanta certeza.

Houve, também, o argumento de que Jô tinha uma motivação nefasta: teria recebido dinheiro público para financiar suas peças e livros. Nem me darei ao trabalho de checar se isto é fato, ou de especular se o valor do ‘dinheiro público’ envolvido era muito, pouco, ou nada perto do provável patrimônio pessoal do artista depois de 50 anos de trabalho. (Acho que todos conseguimos imaginar a resposta, mas definitivamente, não é este o ponto.)

O ponto — que continua a me parecer inaceitável, mesmo depois de uma avalanche de comentários simplesmente nojentos no site, incluindo um simpático ‘Morra, Geraldo” — é que o debate político no Brasil tenha chegado a este verbo, no modo imperativo: morra!

“Ah.. mas foi só um pichador..” Antes fosse.

Muitos, mas muitos leitores mesmo, responderam com o argumento de que Jô “fez sua própria cama” e de que “a cada ação equivale uma reação”, com vários leitores afirmando, inclusive, que a pichação pró-morte teria sido uma reação “previsível”. Outro afirmou: “Se junta com quem não presta e olha o que acontece.”

Fazer o quê, né? Pegou leve com Dilma, agora vai ter que sofrer ameaças. Normal.

E aos inúmeros leitores que disseram que o pichador ‘foi algum petralha’ para ‘fazer o Jô de vítima’… devolvo a especulação: E se não foi?

Mesmo que este tenha sido o ato de um adolescente entediado, o que dizer dos adultos que apoiaram a frase, ou não viram nada demais?

Para que não fique dúvida: não contem comigo para essa festinha do ódio.

Sugiro aos leitores que fizeram este tipo de comentário ler a reação de outro leitor, com a cabeça muito mais no lugar:

“É claro que os fascistas que se escondem nestas seções de comentários iam aprovar essa patifaria. Imagina agora se aparece uma pixação, “Sérgio Moro, morra”, na porta do prédio do juiz, o que essa canalha aqui não estaria dizendo?”

Este ponto me parece tão óbvio que eu não achava que seria preciso desenhar. Se a sua reação ao trabalho de alguém, ou sua resposta argumentativa no debate político for “morra,” é você quem está com morte cerebral.

Não importa se estamos todos convictos de que o PT roubou a Petrobras e arruinou o País. Muitos de nós reconhecemos estes fatos, ansiamos por Justiça, e compartilhamos os mesmos sentimentos de indignação, tristeza e raiva. O que importa é que, se a nossa resposta política pender para o lado do pichador, nosso fracasso enquanto nação estará assegurado, e será muito mais por nossa própria culpa do que o legado de qualquer governo ou partido.

Para mim, o episódio Jô Soares é a ponta de um fenômeno bem mais amplo, que mistura a crescente estridência dos comentários na internet, a intolerância como ponto de partida, o maniqueísmo que não admite nuances ou gradações, e o ódio que está sendo cultivado no País.

O ódio, como a maioria das doenças, é plural e democrático.

Como meus leitores tendem a ser antigoverno, tenho mais contato com o ‘ódio de direita’. Já o ‘ódio de esquerda’ eu vejo quando, por dever profissional, leio os comentários em outros sites…

É verdade que extremistas sempre existiram, mas a internet deu-lhes uma voz que — espero, mas temo que não — seja desproporcional à sua real representatividade social. (O post sobre Jô Soares teve 12 mil curtidas no Facebook — presumo que estas pessoas concordaram com o que eu disse — mas a maioria dos que se dispuseram a comentar passaram a mão na cabeça do pichador.)

A opinião pública, historicamente, tem um centro bem grande e elementos radicais apenas na margem, mas hoje, os radicais são a maior parcela de quem comenta.

Para quem acha que estou exagerando: o fenômeno está sendo observado em outros lugares. No final de semana, a ombudsman da Folha de São Paulo sugeriu que o anonimato passe a ser proibido nos comentários nos sites dos jornal que, sem moderação, se tornaram “um repositório de mensagens ofensivas, xingamentos, manifestações de intolerância religiosa, política, sexual, ideológica e de outras selvagerias — tudo respaldado no conforto do anonimato.”

As ideias importam.

Na semana passada, um racista matou nove pessoas numa igreja nos EUA.

Existe uma analogia aqui? Sim. Por mais que a coragem de cometer uma chacina seja um ato unilateral, aquele indivíduo estava cercado de uma cultura que tolerava a intolerância contra negros. Que dizia que era ‘okay’.

A cultura não puxa o gatilho, mas planta a semente do mal.

Na Carolina do Sul, a bandeira dos confederados (os que se opunham à libertação dos escravos) ainda é hasteada, e, como lembrou o comentarista Jon Stewart, “as estradas nas quais os negros dirigem ainda têm nomes de generais que lutaram para que os negros jamais pudessem estar dirigindo ali, livres.”

Na medida em que o Brasil se torna cada vez mais parecido com os EUA nas discussões de raça, política, religião e costumes, corremos o risco de nos parecer com eles também nesta subcultura do ódio.

Ou será que somos melhores que eles nisto? No Brasil, dá pra conviver preto com branco, hétero com gay, árabe com judeu, evangélicos e ateus, e eleitores da esquerda com os outros? Ou vamos fechar a conta e mandar logo um ‘morra’?

Só temos duas opções: ou fazemos o jogo daqueles que querem ‘matar’ quem discorda, ou tentamos retomar o debate político com civilidade e humanidade.

Seria fácil deixar passar um, dez ou mil comentários de leitores que tentam justificar o desejo ou a incitação de morte contra Jô Soares.

Seria fácil, mas não seria certo.

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