A saga da GameStop, na qual milhares de sardinhas levaram terror aos tubarões, trará consequências profundas e duradouras para o mercado no que diz respeito a sua estrutura e regulação, além de impactar a política dos EUA nos próximos anos.
 
O episódio mostra que, em muitos aspectos, a crise de 2008 nunca acabou.

O ataque aos short sellers é uma espécie de eco do movimento Occupy Wall Street, surgido da percepção de que as medidas econômicas tomadas para salvar o capitalismo em 2008 foram extremamente benevolentes com o setor financeiro, socializando o prejuízo para o cidadão comum.  

Mais de 12 anos depois, o ressentimento ainda é grande, e foi exacerbado pela política monetária dos últimos anos, que inflou os preços dos ativos financeiros e aumentou ainda mais a desigualdade de renda e riqueza nos EUA, em alta ininterrupta há 40 anos.
 
Estrutura de mercado
 
Depois da GameStop, talvez não faça mais tanto sentido chamar investidores de varejo de stupid money — aqueles que chegam no final da festa para dar saída aos hedge funds e outros investidores institucionais, ou que costumam vender em momentos de pânico generalizado. Não apenas eles estão mais sofisticados, mas acabaram de mostrar o estrago que podem causar quando atuam de forma organizada.
 
E qual será o futuro da venda a descoberto? O episódio contribuiu para estigmatizar não apenas a prática do short selling, mas também os próprios hedge funds, o que é extremamente simplista e perigoso. Primeiro, porque investidores de varejo podem ter exposição indireta a hedge funds, sendo inclusive comum que fundos de pensão sejam investidores nos mesmos. Além disso, é inegável a importância dos hedge funds e das vendas a descoberto para disciplinar o mercado e prevenir fraudes corporativas. O tempo dirá se os short sellers passarão a temer a fúria das sardinhas.
 
O movimento nas ações da GameStop fez com que o valor de uma empresa em dificuldades chegasse a US$ 30 bilhões (maior que metade das empresas do S&P 500). A politização do episódio trouxe uma discussão impensável. A senadora Elizabeth Warren afirmou que a SEC deve garantir que os preços das ações “reflitam apenas os fundamentos da empresa.” Só faltou dizer quem e como definirá os “fundamentos.” Como me disse um investidor uma vez: “não estou no business de comprar ações baratas, mas sim de comprar ações caras que vão ficar ainda mais caras.”
 
Regulação
 
O fato é que os reguladores terão que se adaptar à nova realidade de investidores de varejo organizados através de plataformas e redes sociais. As definições de manipulação de mercado e conluio terão que ser aprimoradas para incluir não apenas grandes investidores em jantares privados, mas também os chat rooms de plataformas de trading e redes sociais.

O modelo de negócios da corretora Robinhood, usada pelos investidores de varejo para comprar ações da GameStop e colocar os hedge funds em córner, trouxe à tona conflitos de interesse e uma prática cada vez mais sob o escrutínio dos reguladores americanos: o “payment for order flow”, ou seja, a compra do fluxo de ordens. 

Como se sabe, a Robinhood não cobra taxa de corretagem de seus clientes, mas uma de suas fontes de receita é o pagamento que recebe de plataformas de negociação como o Citadel para executar suas ordens. Trata-se de mais um exemplo de que “quando um produto é de graça, na verdade o produto é você.”

Independentemente do fato de os clientes da Robinhood não estarem felizes com o desfecho da história, talvez a prática de venda de fluxo de ordens não continue como antes.
 
Política
 
Vários filmes e documentários foram feitos sobre a crise financeira de 2008, e no final era comum a frase: “… and nobody went to jail.”  Contudo, grande parte dos atos responsáveis pelo colapso do sistema não eram passíveis de punição com prisão. Do que se trata então? 

Simplesmente, a estrutura de incentivos para as pessoas no topo da cadeia era não só errada como assimétrica. Muito pouco mudou desde então, e o ambiente de juro zero por tempo praticamente indeterminado só aumentou o incentivo para alavancagem infinita. Se der errado, simplesmente muda-se a regra do jogo ou o contribuinte paga a conta sob a mesma desculpa de risco sistêmico. Como dizem os americanos, “Heads I win, tails everyone loses.” CEOs de instituições emblemáticas que quebraram em 2008 pouco tempo depois já eram vistos em seus jatos privados.
 
Sendo o mercado financeiro americano o maior do mundo e o dólar a principal moeda de reserva, os EUA empurraram para o mundo a conta da estrutura de incentivos e dos conflitos de interesses presentes no seu sistema financeiro. Obviamente essa não é a única razão, mas como consequência da crise financeira global, países com a Espanha poderão ter uma geração perdida.
 
Para o bem da economia e bom funcionamento dos mercados, é essencial que o cidadão comum volte a ter confiança no sistema. Mas como e quando isso pode acontecer? Os primeiros passos de Joe Biden indicam que ele pretende mudar 40 anos de uma ideologia Republicana que foi hegemônica mesmo em governos democratas. 

Ronald Reagan cunhou a frase segundo a qual as nove palavras mais perigosas da língua inglesa são: “Eu sou do governo, e estou aqui para ajudar.” 

Um alto funcionário do Governo Biden disse recentemente que investir em “equidade” é bom para a economia, e que a prioridade da Casa Branca será Main Street, não Wall Street. Além disso, finalmente não contaremos apenas com a política monetária para estimular a economia; a Secretária do Tesouro, Janet Yellen, tem repetido incessantemente que é hora de gastar. Um maior ativismo governamental em áreas como o clima terá importantes implicações para o ambiente de investimentos na próxima década.
 
Independentemente da orientação política da atual administração americana, o mais importante para recuperar a confiança no sistema é que as regras sejam iguais para todos. Não existe manipulação do bem e manipulação do mal. 
 
 
Roberto Attuch Jr. é  fundador e CEO da OHMRESEARCH.