A rica herança cultural da China, profundamente enraizada no confucionismo, tem tradicionalmente definido o papel das mulheres como submissas, encarregadas das responsabilidades da procriação, cuidado dos filhos e apoio aos maridos e pais. 

No entanto, uma mudança sísmica está em andamento, à medida que as mulheres rejeitam essas expectativas tradicionais, optando por evitar o casamento e a maternidade.

No cerne dessa transformação social reside uma realidade preocupante: se essa tendência persistir, a população da China, atualmente em 1,4 bilhão, deve despencar para meros 500 milhões até 2100, segundo projeções recentes. 

Para contextualizar, se a China se mantiver nesse ritmo e os Estados Unidos, com sua população atual de 341 milhões, mantiver seu crescimento populacional de 0,54% ao ano, em 2100 a população dos EUA será maior do que a da China.

Este declínio demográfico acentuado levanta questões cruciais sobre a sustentabilidade do futuro da China, com grandes impactos para outras nações.

A interessante dinâmica linguística adiciona um elemento preocupante a essa narrativa. Evidenciada pela expressão da “obrigação” das mulheres de terem filhos, a própria palavra para “bom” (好) é formada pela combinação dos caracteres mulher 女 e criança 子. Isso destaca vividamente a pressão cultural imposta sobre as mulheres para cumprir esse papel predeterminado.

Análises sobre a estabilidade populacional normalmente citam o benchmark de 2,1 filhos por mulher. Contudo, esse número presume uma proporção igual de gêneros, um luxo que a China não possui. 

Os vestígios da política do filho único, marcados por um significativo excedente de homens – aproximadamente 100 milhões a mais do que mulheres – criam um desafio único. Ajustando para essa disparidade de gênero, as mulheres na China precisariam ter consideravelmente mais do que 2,1 filhos para manter a estabilidade populacional. Entretanto, a taxa de natalidade atual se aproxima de 1, sinalizando um brutal declínio demográfico.

A China está à beira de um colapso demográfico, com uma cascata de consequências prestes a remodelar a nação. Escassez de mão de obra, déficits previdenciários e até agitação social podem estar no horizonte. O ônus sobre o sistema de saúde aumenta à medida que uma população envelhecida exige mais cuidados, sobrecarregando recursos e infraestrutura.

A solução do problema passa por mudar a cultura e a narrativa governamental, que perpetua a submissão das mulheres e se limita a demandar que elas tenham mais filhos.  Se quiser reverter seu declínio demográfico, a China terá que iniciar uma mudança fundamental nas normas culturais. Educar os meninos de maneira diferente, passar a respeitar as mulheres como iguais, compartilhando as responsabilidades de cuidar dos filhos e dos pais, e desmantelar práticas discriminatórias traria muito mais resultados. 

A diminuição populacional tem implicações não apenas para a própria China, mas também para países exportadores, como o Brasil, Austrália e Argentina, que podem enfrentar mudanças significativas no comércio com a China. 

Além de ser o maior importador mundial de alimentos, a China é também o maior produtor agrícola, importando apenas complementarmente. Com a redução demográfica ao longo das próximas décadas, a tendência seria de uma mudança nesse cenário. 

A China poderá não apenas deixar de ser o maior importador, como poderá se tornar um exportador de alimentos, especialmente para nações vizinhas que continuam a experimentar crescimento populacional e, consequentemente, uma maior demanda por alimentos. 

Essa transformação poderia ter implicações significativas para países como o Brasil, cuja economia é fortemente influenciada pelo setor agroindustrial, exigindo uma cuidadosa consideração das estratégias econômicas a longo prazo.

A jornada da China em direção a uma crise demográfica não é inevitável, mas exige uma correção de rumo audaciosa. Pedir desculpas às mulheres que suportaram as consequências desumanas da política do filho único é um imperativo moral, mas não basta. Esse pedido de desculpas deve não apenas envolver palavras, mas também ações efetivas para corrigir as injustiças e melhorar a condição da mulher na sociedade.  

A China deve acabar com práticas discriminatórias no local de trabalho, garantir licença parental equitativa e garantir acesso a creches acessíveis.  E, talvez o mais importante, fazer os homens chineses entenderem que elas não estão lá para ter filhos e servi-los.

Ao desmantelar expectativas culturais ultrapassadas e fomentar um ambiente que valorize a autonomia das mulheres, a China pode enfrentar seus desafios demográficos com resiliência e inclusividade. 

Charles Putz é executivo e conselheiro de empresas, já viajou extensivamente pela China e atuou junto a empresas chinesas.