Faltava um dia para o jogo entre o Bahia e o Botafogo quando a empresa que administra os bares da Arena Fonte Nova anunciou que aumentaria o preço da Itaipava dentro do estádio de R$ 6 para R$ 8. (A cerveja é patrocinadora do estádio).
Os torcedores espumaram, e o próprio Bahia propôs um boicote.
Em algumas horas, a Ambev partiu para o ataque. Entrou em contato com o Bahia, preparou letreiros e ativou suas redes sociais dizendo que venderia Brahma a R$ 1 fora do estádio.
A torcida foi ao delírio: durante o jogo, gritou palavras de ordem (algumas impublicáveis) contra a outra marca.
Dois anos depois de Jorge Paulo Lemann ter se comparado a um “dinossauro apavorado,” o episódio da Fonte Nova, que aconteceu em setembro, mostra que o dinossauro acordou.
A Ambev está mudando.
A companhia paquidérmica, que sempre explorou cada vantagem de sua liderança de mercado na distribuição, marketing e poder de preço, está dando lugar a uma cultura de humildade e respeito pela concorrência.
Seu marketing tradicional — uma bazuca que investia bilhões no futebol e na televisão segura do resultado — abriu alas para um marketing cirúrgico e em sintonia fina com a cultura, apreciando os desafios e oportunidades trazidos pela fragmentação da mídia.
No C-level da companhia, a obsessão cega por cortar custos como se cortam as unhas está sendo trocada por uma preocupação genuína com inovação, mesmo que isso demande tempo e produza erros inevitáveis ao longo do caminho.
Last but not least, a cultura “trabalhe na Ambev e fique rico” foi trocada por uma nova ordem: a companhia precisa estar bem com todos os stakeholders, do dono do bar ao pequeno fornecedor — passando, é claro, pelo consumidor e o acionista.
“Aquele cara que entrava lá pra ganhar um bônus gordo agora tem que conviver com o cara que quer salvar o mundo e o outro que quer salvar a água,” diz um investidor que acompanha de perto a empresa.
A mudança começa pelo topo. Enquanto lideranças anteriores tinham dificuldade em perceber que o mundo mudou, o CEO Jean Jereissati parece intensamente ciente do desafio.
Na segunda-feira, Jereissati enviou um email interno agradecendo aos ambevianos por conquistas recentes no esforço de inovar. Com o título “Estamos rejuvenescendo”, o email focava no processo de criação da Brahma Duplo Malte — lançada depois do Carnaval e vista internamente como um dos lançamentos mais bem-sucedidos da história do grupo Anheuser-Busch InBev (ABI).
No episódio da Fonte Nova, a ideia da reação rápida veio da Draftline, a agência de marketing in-house criada pela Ambev para dar velocidade à comunicação de suas marcas no dia a dia. Só no último ano e meio, a Draftline cresceu de 16 para 150 pessoas. (A agência não está num bunker no Itaim, mas espalhada pelos escritórios regionais da empresa.)
Quando se fala em inovação, o maior inimigo da Ambev hoje é sua própria escala. Como a companhia é grande demais, as mudanças em curso ainda podem demorar a mexer os ponteiros no painel de controle.
Das três marcas principais, a maior é a Skol com 40% do volume, seguida pela Brahma (25-30%) e Antarctica (10-15%).
“A Skol ainda é muito relevante no portfólio e passou muito tempo desconectada do consumidor,” diz um investidor. “O medo da Skol é virar uma Bud ou uma Bud Light, um produto que vai declinando aos poucos.”
Mas há sinais de progresso. Ano passado, a receita da Ambev no Brasil com cervejas e outras bebidas alcoólicas que não existiam 3 anos antes já representava 10% do total, o dobro dos 5% de 2018. (A empresa não fornece um guidance para este ano.)
O processo de inovação passa pela linha de produtos, mas principalmente pelo jeito de fazer as coisas.
No ano passado, por exemplo, o tempo médio de desenvolvimento de novos produtos caiu de 12 para 4 meses.
Parte disso foi graças ao CIT, o Centro de Inovação e Tecnologia Cervejeira que a companhia inaugurou em 2018 dentro da UFRJ. Só no ano passado, este centro produziu 114 inovações, entre cervejas, embalagens, rótulos e outras bebidas.
Além do input do CIT, a companhia adotou o método ‘agile’, comum em startups de tecnologia, em que as pessoas trabalham em paralelo e em diversas frentes dentro de um mesmo projeto.
Nos últimos dois anos, a Ambev também abraçou o ecossistema de startups: hoje, já se relaciona com mais de 13.000, em todos os estados do Brasil e fora do País. Só no ano passado, a companhia fechou 250 negócios com empreendedores — entre contratos de fornecimento e parcerias — o mesmo número dos últimos 5 anos somados.
O Zé Delivery, aplicativo de entrega da companhia, cresceu 10 vezes ano passado e, com a pandemia, passou a figurar entre os três maiores clientes da empresa. Em vez de contar os centavos, a Ambev investiu na frente e estava pronta para a oportunidade. “Se você tivesse apertado o custo até a última linha, a coisa não ia funcionar: o sistema só ia conseguir fazer o mínimo possível e o site ia cair,” diz um executivo sênior. “Temos que ter cada vez mais mentalidade de negócio pequeno e deixar crescer.”
Insiders da companhia dizem que o momento atual da Ambev está sendo favorecido por Jereissati, que se tornou CEO no início do ano. Em boa parte, ele foi escolhido por ter um histórico de inovação quando foi o principal executivo do grupo na China e na Ásia-Pacífico. “Onde acontece coisa nova no mundo hoje é na China, não nos EUA e Europa,” diz uma fonte da ABI.
Mas é no marketing — o coração de qualquer empresa de consumo — onde o mergulho da Ambev na inovação consegue ser mais visível ao público externo.
Recentemente, o marketing da companhia se tornou mais espontâneo e barulhento — quase subversivo — além de demonstrar flexibilidade e adaptabilidade. O exemplo mais acabado: as lives que a empresa tem patrocinado na pandemia.
“O modelo não é novo, mas a gente pro-du-ziu as lives,” diz Ricardo Dias, que assumiu como vp de marketing da empresa há um ano e meio. “Não é que o cara pegou o celular e fez uma live. Teve roteiro, teve cenografia, e é por isso que as pessoas gostam.”
Com a tese de que o marketing deve “entreter e não interromper” as pessoas, desde o final de março a Ambev já fez 350 lives com 296 artistas. As 1.000 horas de programação renderam 678 milhões de views e as marcas da companhia foram mencionadas espontaneamente 2,2 milhões de vezes nas redes sociais. Segundo a empresa, o número de espectadores das lives foi 57% maior que os da final da Copa de 2018 no Brasil.
Dias tem 20 anos de companhia, 15 deles fora do País. Em 2004, quando a Ambev se juntou à Interbrew, ele fez parte do pequeno grupo que foi para a Europa fazer a integração das duas companhias. Trabalhou em Londres, Toronto, Xangai, Nova York e Cidade do México, antes de voltar ao Brasil no início de 2019 como chefe do marketing.
Seis meses atrás, Dias recrutou Anitta, a cantora que se tornou uma entidade da cultura pop brasileira, como embaixadora da linha Beats. Mas em vez de um cachê, mudou o modelo de remuneração e ofereceu-lhe participação nas vendas.
A sacada seguinte foi maior ainda: “O meu contrato com ela é uma página em branco,” Dias disse ao Brazil Journal. “Eu falei, ‘Não precisa botar esse negócio de número de posts…. Eu assino, você assina. Você é sócia, faz o que quiser.’ Olha, ela faz infinitamente mais do que estaria num contrato normal.”
Com 47,5 milhões de seguidores no Instagram, Anitta produz e veicula o conteúdo da Beats a partir de seu Samsung, sem custo para a Ambev.
Para Dias, “este é o futuro da publicidade. Trazer pessoas que representam o propósito da tua marca para serem teus sócios.”
Suas ideias de parceria mostram como a companhia está pensando fora do engradado. Esta semana, a Ambev anunciou o DJ Vintage Culture como embaixador da marca Beck’s. “No futuro, ele poderia ter uma linha de roupa com a Beck’s e a gente pode ser sócio,” diz Dias, numa frase que seria anátema na Ambev de outros tempos.
“Temos uma escala aqui que precisa ser usada não só para fazer cerveja. A Netflix investe bilhões de dólares por ano em conteúdo original. A Ambev poderia ser uma grande produtora de conteúdo no Brasil. O retorno sobre o investimento é tão bom que não dá nem pra calcular.”
A Ambev também está disposta a ouvir mais o consumidor. Historicamente, a companhia fazia lançamentos nacionais sem sequer testar o produto numa praça. “O piloto já era o lançamento,” diz um executivo. Isso mudou. A Brahma Duplo Malte foi pilotada em Campinas e Uberlândia. A Skol Beats GT ficou 3 meses só em Campinas. A Michelob Ultra — a cerveja que mais cresce nos EUA, com posicionamento ligado a um estilo de vida saudável — está sendo testada em Floripa. A Stella Artois sem glúten, no Rio.
No mercado, onde a ação da Ambev parou de fazer espuma há anos, ainda há ceticismo sobre quando a velocidade da mudança vai voltar a fazer a companhia crescer.
Dias, obviamente, é mais otimista.
“A boa notícia é que a nossa cultura permite que a gente faça essa mudança rápida. Apesar de sermos um Titanic, a gente tem a habilidade de virar esse barco na velocidade de um jet ski. Agora, é um fato que a gente demorou. E o fato de termos tomado porrada no Brasil — e muita porrada — nos trouxe uma dose de humildade fundamental pra gente deixar a soberba de lado e encarar as coisas como elas são. E a grande mudança: reconhecer que o que nos trouxe até aqui não é o que vai nos garantir os próximos 20 anos. A gente vai ter que mudar completamente a forma de gerir o negócio.”
Para ele, “o marketing é uma das áreas que até pouco tempo atrás estava esquecida na companhia, e de uns anos pra cá a gente viu que, sem marca forte, a gente não vai sobreviver vendendo commodity. Temos que ter marcas fortes e que tenham um papel na vida das pessoas. Tá na nossa mão.”
A nova Ambev sabe que não existe bala de prata para voltar a crescer, mas está disposta a gastar todas as que tem no cartucho pra chegar lá.
Jorge Paulo Lemann é um ‘dinossauro apavorado’. Mas está se mexendo.
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