O Chile está diante de uma encruzilhada: manter sua trajetória bem-sucedida de crescimento econômico, podendo em breve ser considerado um país desenvolvido, ou sucumbir à maldição do populismo latino-americano.

A resposta será conhecida no domingo, quando os chilenos decidirão num plebiscito se aprovam o texto da nova Constituição, resultado do trabalho da Assembleia Constituinte eleita no ano passado.  

Embora tenha passado por diversas emendas, a atual Constituição carrega o peso de ter sido promulgada em 1980, na ditadura do General Augusto Pinochet. A proposta da nova Carta surgiu para aplacar os ânimos dos manifestantes, que, liderados por estudantes, realizaram diversos protestos nos últimos anos, exigindo melhoria nos serviços públicos e a ampliação de direitos para os mais pobres. 

Gabriel boricNum referendo em outubro de 2020, 78% dos chilenos votaram a favor do projeto de escrever uma nova Constituição. Mas agora que o texto ficou pronto, a maior parte dos eleitores indica que votará pelo rechazo, contra a proposta. É isso que indicam as últimas pesquisas, ainda que haja um enorme contingente de indecisos. 

Pelas regras chilenas, não podem ser feitas sondagens nas duas últimas semanas de campanha, o que torna difícil antecipar o resultado das urnas. Bastante previsível, entretanto, é o elevado custo fiscal da nova Constituição. 

Um estudo produzido por um grupo respeitado de economistas locais concluiu que os gastos públicos anuais podem crescer entre 8,9% do PIB e até 14,2% do PIB caso sejam aprovados e regulamentados todos os direitos listados na nova Carta. Entre os autores da análise estão o ex-ministro da Economia Rodrigo Valdés e o ex-presidente do BC chileno Rodrigo Vergara.

No teto da estimativa, as despesas adicionais totalizariam US$ 45 bilhões ao ano. São gastos como a ampliação da aposentadoria do setor público e a construção de moradias populares. 

Influenciada em demasia pelos movimentos identitários e pela esquerda mais radical, a nova Constituição faz mudanças substanciais na estrutura política, com o fim do Senado e a promoção de Câmaras regionais. Alguns analistas falam em “Balcanização” do país, que seria dividido em regiões e territórios com seus próprios sistemas legais. Outros temem pelo enfraquecimento do equilíbrio de poderes, colocando em risco a democracia chilena.  

“A Carta pode ser lida mais como um longo manifesto do que como uma síntese de direitos fundamentais,” disse um editorial do Financial Times. 

Gabriel Boric, o jovem presidente eleito em dezembro, defende a aprovação da nova Constituição. Foi o que ele sempre defendeu quando se projetou como líder estudantil. Mas mesmo Boric reconhece que serão necessários ajustes em caso de vitória do “apruebo”, sobretudo para trazer os trechos mais genéricos do texto para a realidade. 

“Sempre haverá algo para aprimorar e estamos debatendo isso,” Boric disse à revista Time. “Mas a aprovação será um grande passo à frente para o Chile.” 

Do alto de seus 36 anos, Boric cita como avanços a incorporação de ideias feministas, a preocupação com a sustentabilidade ambiental, o aumento dos direitos para trabalhadores e indígenas, além da ampliação de oportunidades para as regiões menos desenvolvidas. 

Se o texto for rejeitado, o presidente certamente vai batalhar para que um novo esboço seja feito – mas ninguém sabe dizer qual seria o caminho legal para isso.  

De acordo com o analista político Thiago Vidal, da consultoria Prospectiva, há três possíveis cenários: 

1) Nada é feito, e a atual Constituição continua valendo. Nesse caso, os manifestantes certamente voltariam às ruas. 

2) Convocação de uma nova Constituinte, o que provavelmente dependeria da aprovação de um novo plebiscito. As incertezas não dissipariam tão cedo. 

3) Realização de reformas estruturais por meio do Congresso em áreas como educação, previdência e saúde, onde se concentram as queixas dos chilenos.  

“Sem reformas, os protestos continuarão e poderão ganhar força,” afirma Vidal. “Não seria conveniente para o governo nem para a oposição.” 

Do ponto de vista dos investidores, o clima tem sido de apreensão. O texto enfraquece o direito privado em concessões públicas e na exploração de minerais.  

O Chile é o maior produtor mundial de cobre e o segundo de lítio. Ao longo dos últimos anos, o país soube usar suas riquezas minerais para reforçar as contas públicas e impulsionar o desenvolvimento.  

Agora, entretanto, os US$ 80 bilhões previstos para investimentos em mineração nos próximos anos estão em compasso de espera. Projetos foram suspensos até que haja uma definição das regras para o setor, que representa 12% do PIB e lidera as exportações. 

Para as companhias, os riscos não vêm apenas da possível nova Constituição. Uma reforma tributária apresentada por Boric também poderá impactar os investimentos. A atual carga de impostos no setor é de aproximadamente 40%, mas poderá superar 50%. O CEO da Antofagasta, Ivan Arriagada, disse que será “desafiador” desenvolver novos projetos de exploração de cobre, sobretudo em jazidas menos produtivas. 

Um relatório da Fitch afirma que se a nova Constituição for aprovada, o Chile deixará de ser um país “business-friendly”, porque o texto reduz a confiabilidade do país, devido às implicações institucionais das novas leis.   

Um dos pontos é o uso da água, essencial para a mineração. As autorizações ficarão sujeitas a uma nova agência, e os contratos seriam provisórios e sujeitos à aprovação de comunidades locais. 

O ambiente de incerteza e indefinições corroeu a credibilidade do Chile, que, até recentemente, era tido como uma ilha de previsibilidade na América Latina. Por anos o país foi celebrado como a maior história de sucesso da região. 

Chile x Brasil – o que deu errado?

Enquanto os brasileiros oscilavam entre altos e baixos – momentos de euforia sucedidos por ressacas devastadoras – os chilenos viram sua renda subir de maneira constante desde o fim da ditadura Pinochet. 

Há 30 anos, o Chile era ligeiramente mais pobre do que o Brasil, levando em conta o PIB per capita ajustado pelo poder de compra nos países. Hoje os chilenos são, na média, 70% mais ricos do que nós. 

Mas os bons números na economia não impediram a insatisfação de parte da população, que nos últimos anos saiu às ruas em protestos liderados pelos estudantes – entre eles o atual presidente, Boric. 

No Chile, apenas os mais pobres têm acesso à previdência pública e à saúde gratuita. O ensino superior é pago, e os estudantes são altamente endividados. 

Os manifestantes representados por Boric querem a ampliação dos serviços públicos gratuitos. Com a reforma tributária e a nova Constituição, o presidente busca entregar suas promessas.  

Até o momento, entretanto, Boric frustrou seus eleitores. Sua aprovação caiu em poucos meses de governo para 37%, um dos menores índices da América Latina. 

O ambiente de incerteza atingiu a economia, o que turva ainda mais o cenário. O peso chileno caiu mais de 30% em relação ao dólar no último ano. Uma das consequências da desvalorização foi a alta na inflação, que disparou para 13,1%, a mais elevada desde 1994. 

“O Chile tem hoje uma das maiores inflações da região, atrás apenas da Venezuela e da Argentina,” diz o economista Francisco Nobre, da XP. “A alta reflete a conjuntura externa e questões internas. Mas o fato é que se trata de uma inflação bem superior à que a população estava acostumada, o que tem efeito para a popularidade do governo.”  

É mais um desafio para as ambições do esquerdista Boric, que não tem maioria num Congresso extremamente fragmentado e dominado pelas forças de oposição. O presidente precisará chegar a consensos com adversários para entregar ao menos parte das reformas prometidas na campanha. 

Portanto, vença o Apruebo ou o Rechazo, o ambiente de indefinições não será superado tão cedo.