No tempo em que o tabagismo não era socialmente mal visto, o cachimbo vinha envolto não só por fumaça, mas por um charme particular.

Ao contrário do charuto, associado à arrogância e à ostentação – vide a caricatura clássica do capitalista inescrupuloso, onde nunca faltam cartola e charuto –, o cachimbo evocava um estereótipo lisonjeiro: era baforado por homens de fina elegância e inteligência aguda, praticantes da mais alta especulação intelectual, como o detetive Sherlock Holmes.

O escritor e jornalista inglês Jerome K. Jerome (1859-1927) – contemporâneo de Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock – decerto tinha essa imagem altiva do fumante em mente quando dedicou Devaneios Ociosos de um Desocupado, uma saborosa coletânea de ensaios que a editora Carambaia publicou no Brasil, ao seu próprio cachimbo, amigo que “nunca pede dinheiro emprestado e nunca fala de si mesmo.”

A dedicatória, no entanto, já exibe certas manchas amarelas no retrato idealizado do tabagista: o autor admite que o cachimbo é visto com “inequívoca frieza” pelas mulheres da família, além de despertar a desconfiança do cachorro.

Esse é um procedimento recorrente ao longo do livro: quando o texto começa a se embrenhar na exaltação de grandes virtudes e altos princípios, o autor logo se sai com uma observação de fina ironia ou grosso deboche para bagunçar a compostura do século XIX inglês.

Autor prolífico e batalhador, que se ergueu da miséria para o sucesso, Jerome K. Jerome era, antes de tudo, um humorista. E um grande humorista, posto que ainda faz rir neste século XXI tão distanciado da empedernida era vitoriana.

Lançado em 1886, Devaneios Ociosos de um Desocupado reúne 14 textos publicados desde o ano anterior na revista Home Chimes – que contava com outro grande humorista entre seus colaboradores: o americano Mark Twain. Os ensaios cobrem de abstrações filosóficas (“Do amor”, “Da memória”) a trivialidades cotidiana (“Do clima”, “Do apartamento mobiliado”). É o tratamento sempre inusitado e irreverente que Jerome dá a seus temas que faz a diferença.

“Do ócio”, ensaio que abre o volume, é um bom exemplo. Jerome apresenta-se como um homem ocioso, mas com uma particularidade: ele não encontra prazer no ócio das férias, quando não há compromissos a cumprir.

Pois é preciso estar ocupado para apreciar a indolência: “O momento em que mais gosto de ficar parado, com as costas para o fogo e calculando o quanto devo pros outros, é aquele em que sobre minha mesa ergue-se um pilha piramidal de cartas a serem postadas no próximo malote.”

Na verdade, Jerome nunca foi ocioso. A vida o forçou ao trabalho precoce. Seu pai dissipou o dinheiro da família investindo em minas de carvão improdutivas; quando ele morreu, Jerome, com precoces 13 anos, foi lançado à penúria – experiência amarga que ele relembra no ensaio “Da privação”.

Fez carreira vendendo notícias para jornais de Londres. Vencia a concorrência de outros repórteres amadores com um diferencial marcante: seus textos tinham humor.

Devaneios foi seu primeiro grande sucesso, seguido três anos depois pelo romance cômico Três homens em um barco. No posfácio da edição da Carambaia, o tradutor Jayme da Costa Pinto ressalta a inovação que o livro representou para a literatura na Inglaterra da rainha Vitória: muitos críticos torceram o nariz aristocrático para a coloquialidade da prosa.

A leveza que desagradou os literatos vitorianos conserva seu frescor. É uma delícia acompanhar as pequenas crônicas de descompassos cotidianos que Jerome insere em seus textos.

E a vida talvez não tenha mudado tanto desde a era vitoriana: os fãs de Seinfeld vão lembrar de um dos episódios mais hilários da série – aquele em que o protagonista e seus amigos, todos solteiros, visitam a mãe coruja que acaba de ter o primeiro filho – quando lerem o ensaio “Dos bebês”.

Nesse texto, Jerome K. Jerome descreve o patético desconforto do jovem solteiro que se vê obrigado a visitar o casal que acaba de ter um rebento. “Um homem solteiro não passa por maior apuro na vida como quando enfrenta o convite ‘venha conhecer o bebê’”, diz Jerome.

Jerry Seinfeld concorda.