Na tarde de hoje, a CVM suspendeu por até 30 dias a oferta ações da Azul, uma operação que fortaleceria uma empresa que emprega 84 funcionários para cada uma de suas 123 aeronaves* — sem falar nos empregos indiretos que gera — e permitiria que milhares de investidores internacionais e brasileiros se tornassem sócios da companhia aérea.  (*dados do prospecto!)

Trata-se de uma decisão lastimável, desproporcional e equivocada, em boa parte resultado da implementação de uma Lei do Silêncio defasada, uma rotina regulatória que mais prejudica do que ajuda o mercado de capitais brasileiro.

“A CVM exagerou,” diz José Luiz Osório, ex-presidente da autarquia.  “Ela tem sim que seguir suas instruções, mas ao fazer isso deve usar uma dose de bom senso.”

Abaixo, os três motivos citados pela CVM para amparar sua decisão.  (Procurada, ela não quis se manifestar sobre o assunto.) 

1) Segundo a autarquia, houve “a disponibilização de documentos de suporte a apresentações oferecidas a investidores sobre a Oferta (apresentação de roadshow) em site da internet (www.retailroadshow.com), ficando caracterizado o uso irregular de material publicitário não aprovado pela CVM, em infração ao art. 50 da Instrução CVM 400.”

O site RetailRoadshow existe desde 2005 e já hospedou mais de 2 mil apresentações de IPOs, incluindo as do Facebook, General Motors, Mastercard e Alibaba. Segundo descrição no site, a empresa “atende todos os requisitos da SEC em relação à disseminação igualitária de roadshows para investidores institucionais e de varejo”. 

É frustrante constatar que as normas da CVM não se atualizaram e que o regulador ainda não reconhece o poder de iniciativas como esta de aumentar a isonomia informacional entre investidores institucionais e pessoas físicas, algo extremamente desejável quando se pensa na integridade dos mercados, a própria razão de existir da CVM.  Este nos parece um exemplo a ser copiado, e não censurado. Se, porém, o problema não for o site em si, e sim que o material ali veiculado não fora previamente aprovado pela CVM, a questão parece pequena demais para gerar uma suspensão de até 30 dias.

2) A CVM em seguida reclama da “disponibilização, na citada apresentação de roadshow, de projeções em relação à avaliação de investimentos, notadamente a projeção de valorização do investimento da Companhia em ativos da TAP, que não consta dos documentos da Oferta. Tal fato caracteriza infração ao art. 50, § 2º, da ICVM 400, uma vez que ‘o material publicitário não poderá conter informações diversas ou inconsistentes com as constantes do Prospecto’.”

Se a Azul cometeu a bobagem de deixar essas projeções de fora — se alguém comeu mosca — a CVM está coberta de razão em repreender a empresa e exigir a atualização imediata do prospecto, mas, ainda assim, é no mínimo questionável se o remédio aplicado agora é proporcional ao dano supostamente causado.

3) Por fim, a CVM censura o que chamou de “divulgação sucessiva de informações de caráter sigiloso acerca de projeções para a demanda e precificação das ações da Oferta em matérias jornalísticas, como se pode observar, por exemplo, nas matérias divulgadas pelo Estadão/Coluna do Broad, UOL Economia e Brazil Journal, entre os dias 4 e 5/4/2017, em infração ao art. 48, inciso IV, da ICVM 400.”

De todas as alegações da CVM, esta é a que mais carece de bom senso, porque esta informação é necessária para que centenas (se não milhares) investidores institucionais tomem decisões, e eles já têm acesso a ela. Só quem está de fora é o investidor pessoa física, que a CVM julga proteger.

A vida de um repórter em busca de notícias sobre um IPO é duríssima. Dado o histórico censurador-punitivo da CVM, as empresas em processo de IPO não apenas não falam com a imprensa: elas trocam de calçada quando vêem um repórter vindo em sua direção. (Pode parecer engraçado, mas quem perde é o leitor, para quem o repórter trabalha.)

A mesma coisa acontece com os bancos envolvidos nas operações: advertidos por seus advogados e frequentemente com linhas telefônicas gravadas, eles não têm incentivo algum em cooperar com a imprensa.

Mas qualquer investidor institucional que quiser saber a situação de uma oferta basta pegar o telefone e ligar para um dos bancos envolvidos.

Há, nessas conversas, o velho jogo entre comprador e vendedor:  os bancos geralmente dizem que a oferta vai maravilhosamente bem, e os investidores aplicam uma ‘taxa de desconto da lorota’ dependendo da fonte e de seu histórico com ela.  (Como fazem os repórteres, aliás.)

Mas, no fim do dia — assim como acontece no caso do RetailRoadshow — o investidor institucional consegue a informação e pode tomar sua decisão.  O único que não a possui é o investidor pessoa física, cuja única chance reside no trabalho suado dos repórteres da Coluna da Broad/Estadão, do UOL Economia e deste Brazil Journal (citados hoje pela CVM), e nossos colegas no Valor Econômico, Bloomberg e Reuters, que já deram furos sobre diversas ofertas.

O jornalismo financeiro tem muitos defeitos, mas uma de suas qualidades é ajudar a equalizar a informação disponível.

Ao repensar suas normas, a CVM deveria considerar as seguintes perguntas:  “Por que estas informações sobre o nível de demanda e preço são consideradas ‘sigilosas’?  “Como delimitar, dentro do conceito de sigilo, quem pode e não pode ter acesso a elas?”  E, por fim, “Qual foi o dano — material e demonstrável — causado a investidores pelas notícias veiculadas sobre esta oferta?”

Infelizmente para o mercado de capitais brasileiro, a tentativa da CVM de coibir notícias sobre ofertas — de implementar a Lei do Silêncio a todo custo — é o que causa o dano real ao mercado.

Informação nunca é demais. Ela gera discussão, expõe contradições, e permite que se forme um mercado de opiniões — e finalmente, preços.

Esta postura dura da área de registros da CVM é parte de um contexto ainda mais amplo:  a burocracia avassaladora que transforma em pesadelo qualquer tentativa de fazer negócios no Brasil.  Este episódio deveria abrir uma discussão honesta sobre as normas atuais e a necessidade de adaptá-las ao mundo real.  

Hoje à noite, executivos da Azul, banqueiros e advogados envolvidos na oferta estão provavelmente aturdidos em Nova York, proibidos de aceitar bilhões de reais em ordens, e com a proverbial broxa na mão.

Amanhã, David Neeleman — o brasileiro-americano que fundou a JetBlue nos EUA e depois teve a coragem de empreeender e criar a Azul no Brasil —  tocaria o sino de abertura da Bolsa de Nova York; seria um motivo de orgulho para o Brasil, e uma rara boa notícia nos dias de hoje.

Infelizmente, este momento de glória terá que esperar.  Tomara que não por muito tempo.