Até o final da década de setenta do século XIX, Machado de Assis publicara romances bem escritos e bem comportados, como A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia. Seguiam um padrão, uma estética própria das novelas de amor. No final de 1878, Machado tem um problema grave na sua vista, fica incapacitado de ler e é obrigado a se cuidar.
Ele e Carolina, sua mulher, passam uma temporada em Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro, onde permanecem até março de 1879. Naquele período de cegueira, Machado vê algo diferente. Enquanto se curava, Machado elabora O alienista – um conto? Uma novela ou um pequeno romance? – e inicia a redigir Memórias póstumas de Brás Cubas.
Em 1881, publica Memórias póstumas. No ano seguinte, 1882, O alienista é incluído, com outros contos, em Papéis avulsos. Machado havia cruzado uma ponte. Mergulhou no realismo. Mais do que isso, mergulhou o Brasil no realismo.
O alienista é uma obra-prima do sarcasmo.
O médico e cientista Simão Bacamarte – o alienista – desfruta enorme reputação. Depois de estudar na Europa, volta consagrado para o Brasil, estabelecendo-se na vila de Itaguaí. É um protegido das cortes. Bacamarte se entende como devoto adorador da ciência. Para ele, a ciência cura todos os males. Casa-se com a jovem viúva Dona Evarista, “não bonita nem simpática”. Faz isso por acreditar que Dona Evarista reunia boas condições fisiológicas – num equívoco do médico, pois sua mulher não lhe rendeu os esperados herdeiros.
Simão Bacamarte consegue construir, com dinheiro público obtido por meio de impostos (passou-se a tributar os penachos utilizados pelos cavalos nas carruagens fúnebres), um monumental nosocômio, que denominou sanatório da Casa Verde, por conta das cores de suas janelas. O hospital seria dedicado a cuidar dos desprovidos de sanidade mental. Cabia a Bacamarte diagnosticar o louco. Em seguida, mandava retê-lo no sanatório. O cientista estava aficionado em suas pesquisas e teorias.
Rapidamente, instaura-se o terror em Itaguaí. Sem critério objetivo, o alienista Bacamarte determinava a reclusão das mais diversas pessoas. Costa, um sujeito boa praça e estimado na cidade, foi levado ao hospital por emprestar sem cobrar juros, o que acabou por lhe trazer a ruína econômica. Um outro foi também preso no sanatório por gostar de observar as flores. Um rapaz teve sua reclusão ordenada por fazer um poema em homenagem à Dona Evarista. Bacamarte identifica um sem-fim de loucuras e transtornos. O número de internados cresce exponencialmente. Ninguém estava a salvo. Era o terror.
A comunidade de Itaguaí se rebelou contra os desmandos do alienista. O barbeiro Porfírio, munido de aspirações políticas, lidera o movimento contra Bacamarte e as prisões arbitrárias no hospício, no que ficou conhecido, nos anais da cidade, como a Revolta dos Canjicas – a partir do apelido do barbeiro. A guarda real, os “Dragões”, teve que intervir, protegendo a Casa Verde da destruição pela gente da cidade.
No momento crucial da Revolta, quando o capitão dos Dragões exige a rendição dos insurretos, o barbeiro responde heroicamente ao capitão: “Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.”
Machado qualifica essas palavras, naquele momento, como imprudentes. “Era a vertigem das grandes crises”. Entretanto, a resistência reverberou. Alguns Dragões mudaram de lado. Rapidamente, deu-se uma reviravolta. O capitão se rendeu, entregando sua espada ao barbeiro, líder do movimento. O barbeiro Porfírio toma o poder da vila. Faz isso alegadamente em benefício do Rei. Passa a se qualificar como o “Protetor da Vila em nome de Sua Majestade e do povo”.
O poder de Porfírio dura pouco. Como o barbeiro tinha aspirações políticas, tentou compor com Simão Bacamarte, que seguiu no comando do hospício. As internações não cessam. O barbeiro perde credibilidade e apoio. Outro barbeiro, João Pina, inicialmente partidário de Porfírio, volta-se contra ele. Há a deposição do Canjica. O comando público se esgarça.
Quando boa parte da cidade estava internada no hospício, o alienista Bacamarte, de forma surpreendente, acaba por rever suas verdades. Muda de orientação. Logo adiante, mudará outra vez, entendendo que sua teoria anterior estava equivocada. Liberta todos os “loucos”, e ele próprio se interna na Casa Verde. Ele passa a ser o objeto de seus estudos. Pouco mais de um ano se passa e Bacamarte morre, “sem ter podido alcançar nada”.
O alienista precede a Interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, lançado em 1900. Quase uma década antes, Machado de Assis já escrevia que seu Simão Bacamarte “estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia”.
O alienista impõe a seguinte discussão: quem é o louco? Ainda: quem pode dizer onde está a loucura?
Entre as fraquezas humanas, a dificuldade da autocrítica ganha destaque. Somos péssimos juízes de nós mesmos e, ao mesmo tempo, os melhores juízes, segundo nossa convicção, do resto dos semelhantes. Os loucos são os outros.
Talvez a lição de O alienista – se é que Machado estava preocupado em dar lições – é a de que Simão Bacamarte, ao fim, reconhece ser ele próprio o grande mentecapto. Nossa busca pelo aprimoramento pessoal deveria passar por essa fase, na qual nós mesmos nos internamos para estudar nossas “loucuras”. Desde os primórdios da filosofia, o autoconhecimento serve como pressuposto da vida saudável.
Há uma pureza de propósito em Simão Bacamarte que assombra. O cientista tem convicções. Machado coloca em oposição o “honesto” Bacamarte e o “oportunista” barbeiro Porfírio, que assume uma causa, mas faz tudo em função de uma agenda oculta. Os propósitos honestos, por mais disparatados que sejam, têm resiliência.
O conto traz um segundo tema de reflexão. Um tema sinistro.
Esse julgamento alheio, que fazemos mesmo por instinto, ganha maior repercussão na exata medida do poder do julgador. A capacidade de Simão Bacamarte identificar a loucura nos demais não teria grandes consequências se ele não tivesse o poder de mandar prender as pessoas no hospício à medida em que encontrava o que considerava um transtorno.
O arbítrio reluz quando se concentra na mesma pessoa o papel de acusador e juiz. O alienista detinha o poder de qualificar e definir o que se considerava a doença, indicar o louco e mandar prendê-lo. A sua opinião bastava.
Esse poder não convivia com o contraditório, nem tampouco com recurso. O alienista, independentemente de seus propósitos “puros”, tornou-se um tirano. Como adverte o Rei Cláudio – um usurpador e assassino – em Hamlet, “a loucura dos grandes precisa ser vigiada.”
Machado de Assis deixou aqui outra fundamental lição, agora não mais relacionada à nossa relação consigo próprio, mas relativa à vida em sociedade: não há Estado saudável quando os homens concentram o poder em excesso.
Num plot twist que só um gênio poderia conceber, O alienista de Machado de Assis incute-nos humildade para ser mais indulgentes com a nossa loucura e, de outro lado, mais críticos com quem exerce o poder. Faz parte do amadurecimento como ser humano reconhecer nossas fraquezas e dominar o desejo egoísta – e infantil – de controlar as pessoas ao nosso redor. O alienista percebe que o louco é ele. Assim começa a verdadeira cura.
Clássico, como se sabe, é aquilo que resiste ao tempo. O alienista prova sua longevidade, sua força como obra, quando conseguimos vê-lo claramente como uma fábula contemporânea.
Vivemos um período no qual a polarização política, infelizmente dominante, alimenta essa cultura de que “os loucos são os outros”. Isso virou normal (mas não é e não deveria ser). Pior, tal como no conto de Machado, o poder se concentra perigosamente. Viramos a Vila de Itaguaí?
José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados (FCDG).