Hoje, a vida normal recomeçou no Espírito Santo depois de uma semana sombria de desordem, medo e violência. Ontem pela manhã a marcha pela paz lotou a praia de Camburi em Vitória. Nos jornais é destaque um apelo para a população tratar bem os policiais militares que voltam ao trabalho.
 
O governador Paulo Hartung reassume o governo e a normalidade parece estar voltando. Escrevo este artigo para explicar o que aconteceu nas contas públicas do estado nos últimos anos, e mostrar que, apesar de nosso ajuste fiscal ter estancado a sangria, ele ainda está longe de ser o remédio definitivo para os males que afligem o Estado brasileiro.
 
O orçamento público estadual de 2015, elaborado pelo Executivo e aprovado pela Assembleia Legislativa em 2014, continha uma expectativa de receita superestimada. Aconteceu em todos os estados.  A crise brasileira estava contratada, e o cavalo de pau tentado por Joaquim Levy desnudou o monstro para todos, surpreendendo os crédulos e desmascarando os mentirosos.
 
O Espírito Santo fez este ajuste ainda em 2014, logo depois da eleição em primeiro turno do governador, que trabalhou com o Legislativo velho para refazer o orçamento antes mesmo de tomar posse, enquanto o Brasil ainda acreditava em Dilma Rousseff e a reelegia para um segundo mandato. Foi o único estado a proceder desta maneira.
 
O ajuste orçamentário capixaba para o exercício de 2015 permitiu uma execução fiscal exemplar, adaptada ao novo ambiente de crise e queda de receita. O resultado primário saiu do negativo em 2014 para apresentar superávit em 2015.
 
A crise aprofundou-se em 2016, e o orçamento ficou mais uma vez desequilibrado: a receita continuava caindo mais que o estimado. Outra vez o orçamento foi renegociado, refeito e adaptado à realidade, o que significa adiar e cortar de investimentos planejados, reduzir brutalmente o custeio e não conceder reajustes lineares na folha salarial dos servidores. Trata-se de consequência imediata e direta da queda de arrecadação causada pela crise. O compromisso com o equilíbrio fiscal representou a disposição de não esconder suas consequências sob o tapete da irresponsabilidade na administração financeira do estado.
 
Este ajuste fiscal – no nível da gestão orçamentaria e financeira – não é pouca coisa, nem é fácil de fazer. Merece aplauso e admiração, mas está muito longe de esgotar tudo que precisa ser feito em termos de ajuste fiscal e reforma do estado. O susto da semana passada mostrou esta realidade de forma eloquente e cruel.
 
No Brasil, acontecem 60 mil assassinatos por ano, o que corresponde a 10% de todos os homicídios do planeta. Nosso sistema policial e jurídico, derrotado de forma acachapante na prevenção da criminalidade, é capaz de apurar e punir apenas 5% dos assassinatos cometidos. Do guarda de rua ao sistema prisional, passando por policiais, promotores e juízes, temos um estado capturado por corporações em permanente luta por espaço de poder e remuneração. A criminalidade, organizada principalmente para explorar o lucrativo mercado das drogas ilegais, é o único setor da economia que cresce e avança. Os eventos da semana passada mostram não ser mais possível adiar um enfrentamento estrutural deste problema.
 
Desde 1999, ano em que Vitória foi a capital mais violenta do Brasil, e de 2002, quando a sociedade capixaba pediu intervenção federal em função da  desordem causada pela máfia política que desmoralizou as instituições públicas locais, o Espírito Santo melhorou muito. A redução da criminalidade e a reforma do sistema prisional foram mostradas na imprensa nacional como evidências de uma importante evolução que de fato ocorreu. Acerto e modernização gerencial, combinados com persistência e seriedade na administração da máquina pública, permitiram as melhorias atestadas pelos indicadores. Toda a sociedade capixaba é responsável por este avanço que vem sendo construído mesmo com as resistências e disputas naturais da democracia.  A despeito de tudo isso, o conflito da semana passada extrapolou as fronteiras da democracia, e mostra que o sistema esgotou sua capacidade de melhorar apenas por aperfeiçoamento gerencial.
 
O lado bom da crise é o debate sem interdição sobre temas desconfortáveis. Vemos um ministro do STF defendendo descriminalização das drogas, políticos falando em fim da estabilidade para o funcionalismo, o repúdio veemente da opinião publica aos supersalários e privilégios para o andar de cima dos governantes, as encrencas e os meandros perversos do nosso capitalismo de compadrio. É a crise fazendo aflorar a dimensão estrutural do debate  e mostrando a profundidade das reformas que precisamos.
 
Na reforma do Estado brasileiro, penso que não há prioridade maior do que a criação de um SUSP, um sistema único de segurança pública, tendo como base novas polícias locais de ciclo completo nas 27 regiões metropolitanas do Brasil, focado na prevenção da violência e no fim da impunidade.
 
A história recente do Espírito Santo e o susto da semana passada servem de exemplo e alerta.
 
 
Luiz Paulo Vellozo Lucas foi prefeito de Vitória por dois mandatos.