Estive em Cuba há alguns meses. Foi minha segunda vez no país que ficou parado no tempo, preso na arapuca de uma Guerra Fria que só não terminou para ele, enquanto o mundo todo partiu para outras guerras e divisões ainda mais assustadoras.
As mudanças são grandes. A livre iniciativa é hoje uma parte pequena mas crescente do cotidiano. Pequenas ‘empresas’ privadas, restaurantes e bares recebem os novos visitantes.
Apesar disto, nada está muito claro ainda. Um de meus objetivos na viagem era estudar as leis que regulam a propriedade de imóveis, mas o setor mudou muito pouco desde quando estive lá mais de uma década atrás. Quando fui em 2003, o imóvel era do Estado e as pessoas tinham o direito de usá-lo. Hoje, o morador é dono do imóvel.
Tirando esse ‘detalhe’, este mercado continua bem fechado aos estrangeiros. Para se ter um imóvel em Cuba, é necessário ser cubano ou, no mínimo, morar no país. Muitos estrangeiros usam os ‘locais’ como laranjas, o que implica riscos infinitos. Há também uma limitação máxima de dois imóveis por pessoa, um na cidade e outro na praia/campo. O mais interessante é que, quando duas pessoas se casam, eles se mudam para a casa da família que tem a maior propriedade. Ou seja, acumulam-se algumas gerações embaixo de um mesmo teto. Diferentemente da Índia, no caso de Cuba essa ‘tradição’ está intimamente ligada à necessidade.
Uma das mudanças que notei em relação à viagem anterior foi nos ‘paladares’, os restaurantes em casas de famílias que são parte da paisagem cubana há anos.
Em 2003, o Governo obrigava um paladar a atender a quatro quesitos: tinha que ser na casa da pessoa, ter no máximo quatro empregados, todos estes empregados tinham que ser da família, e o restaurante podia ter no máximo 12 lugares. Ou seja, um pequeno negócio de família, hiperregulado.
Agora, como resultado da crise do Estado cubano, o paladar não precisa ser mais na casa do empreendedor, não tem mais um número máximo de empregados, estes funcionários não tem que ser da família, e não há mais limitação de mesas. Em outras palavras, o paladar agora é um negócio privado.
Há doze anos, comi muito mal. Quando fui recentemente, amigos me passaram uma lista de restaurantes e, para minha surpresa, comi muito bem. Na maior parte dos casos, os donos dos paladares são cubanos que moraram fora um tempo, tendo sido expostos a serviços e produtos de padrão mundial. Outra coisa: em 2003, nenhum dos paladares tinha Coca-Cola; agora, o refrigerante-ícone do outrora ‘império satânico’ virou commodity na ilha da resistência. Quando pedi uma, a resposta foi: “Normal ou diet?”
Outra mudança importante foi na vida dos taxistas — nada a ver com o Uber…
Em 2003, o taxista cubano era um assalariado do Estado, ganhava 20 euros fixos por mês, e qualquer coisa que ele arrecadasse acima disso ia para o Governo. Uma malandragem comum dos turistas que queriam ajudar os taxistas (e não o regime) era combinar com o taxista de subfaturar a corrida. Se a corrida fosse dar, digamos, 20 euros, o taxista travava o taxímetro quando ele marcasse 5 euros. O passageiro pagava 10 euros pela corrida. Assim, o Governo recebia bem menos, e o taxista levava para casa 5 euros, limpinhos, debaixo do pano. Em quatro corridas nesse esquema, o taxista recebia o que o Estado lhe pagava em um mês. É como diziam na velha União Soviética: “Vocês fingem que trabalham, nós fingimos que lhes pagamos.”
Hoje a coisa mudou. Se o cidadão não tiver nenhum antecedente criminal e tiver cinco anos de experiência, ele pode pedir uma licença para ter um táxi privado. Por esta concessão, ele paga ao Estado 250 pesos cubanos por mês. O Estado ainda recebe imposto sobre o lucro e ganha em outras pontas também: qualquer problema com o carro, a oficina é estatal. A gasolina, também.
Para nós brasileiros talvez seja difícil entender como esse táxi privado é uma revolução. Lembre-se que, em Cuba, o médico, o lixeiro, o professor e o guarda todos ganham o mesmo salário.
Cuba hoje é um país com duas moedas: o peso e o CUC. O CUC é o peso conversível, é a moeda dos turistas. Um CUC compra 25 pesos cubanos, a moeda dos locais. Para se usar como base, 1 euro compra 1,10 CUCs.
Essa diferença cambial gera um incentivo — que perpassa toda a economia — para que as pessoas busquem empregos ligados ao turismo. É onde a grana está, por causa das gorjetas. Um garçom que nos atendeu num paladar (um rapaz formado em enfermagem) disse que tirava 20 CUCs por dia de gorjeta, quase o equivalente a um salário mensal se ele trabalhasse para o Governo.
O país é barato para o estrangeiro, comparado ao que estamos acostumados a ver em outros países. Uma refeição completa (entrada, prato principal, sobremesa e café), em um restaurante de alta qualidade, custa em média 15 euros. O mais caro que pagamos foi 25 euros por pessoa.
Isso dito, quando usamos os mesmos serviços utilizados pelos locais, pagamos muito mais. Peguei o que eles chamam de ‘táxi para cubano’, um carro comum, lotado de pessoas, que faz um circuito específico. O motorista queria me cobrar 5 CUCs, mas acabamos fechando por 1 (25 pesos cubanos). Uma local que entrou em seguida pagou 10 pesos cubanos pela mesma corrida.
Outra reflexão interessante é sobre a pobreza. É verdade que em Cuba não há pessoas dormindo na rua. Ainda assim, trata-se de uma sociedade pedinte. O cubano é muito gentil e solícito, mas, por força das circunstâncias, enxerga o turista como um caixa eletrônico. Ele te leva a um restaurante, diz que é um lugar que ‘só os locais conhecem’, mas é mentira. Ele te leva lá porque ganha uma comissão. E assim que você sai de lá, mal você pisou na rua ele já reaparece ‘magicamente’, desta vez propondo te levar a um bar, e não sai do teu lado até ganhar algum.
É triste.
O fato de Cuba ter parado no tempo ajudou a preservar um padrão arquitetônico interessante. Espero que não se deslumbrem com o neoclássico e com o luxo. Não tenho nada contra o capitalismo americano, mas espero que Starbucks, McDonald’s e cia., em vez de destruírem a ‘paisagem’ local, respeitem as fachadas e o charme cubano. Se souberem usar esta singularidade arquitetônica a seu favor, o lugar tem tudo para explodir. Mas, claro, tudo vai depender de como o mercado imobiliário será ‘regulado’.
Não tenho dúvida que o país evoluiu desde quando estive lá a primeira vez, mas a evolução ocorreu de maneira lenta. Não creio que uma mudança repentina seja a solução ideal, até por correr o risco de criar um grande caos.
Para minha surpresa, a reaproximação com os americanos aconteceu de maneira muito mais rápida do que eu ou alguns locais com quem conversei por lá pudéssemos imaginar. A JetBlue passou a ter cinco vôos semanais entre NY e Havana. Embaixadas foram reabertas depois de décadas.
Não tenho dúvida de que essa reaproximação será, no final das contas, muito benéfica para o país.
Na economia, o setor privado local, mesmo em Cuba, mais uma vez se prova mais eficiente que o Estado. A diferença de qualidade entre o produto e os serviços prestados pela iniciativa privada e pelo Estado é gritante. A razão é óbvia: a primeira vive de incentivos; o segundo, de cartórios garantidos pela lei.
Há, ainda, os incentivos com sinal trocado: o governo não cobra impostos dos seus funcionários, mas quem trabalha na iniciativa privada tem que pagar imposto sobre o que ganha. Além disso, o funcionário público tem sindicato, enquanto o privado, não. Mas como me disse um funcionário de um pequeno negócio privado: “E quem disse que eu quero sindicato?”