O chef Alain Ducasse costuma dizer que o insumo mais importante na cozinha — depois dos ingredientes e da técnica — é o ‘suplemento da alma’, um ‘je ne sais quoi’ que evidencia a paixão e a devoção do chef no preparo de cada prato.

No novo restaurante de Roberta Sudbrack, é possível sentir mais do que o suplemento: a alma inteira da cozinheira está ali, bem como suas lembranças e reflexões sobre o que é mais importante na vida.

10259 d0e1c1f4 90fa 00ff 064c 74d3e9a4e3aeDepois de uma carreira celebrada na alta gastronomia — que começou na cozinha do Palácio da Alvorada quando FHC era presidente e culminou com a abertura do “Roberta Sudbrack”, que ganhou uma estrela Michelin e foi um dos 50 melhores da América Latina — Roberta rompeu com o ônus de comandar um restaurante estrelado.

Ao jornal Público, de Lisboa, ela resumiu assim: “A gente está num momento de trocar de casca. O cliente não aguenta mais, o cozinheiro não aguenta mais, seja pela pressão de não perder o que ganhou, seja de conquistar o que não se ganhou, seja porque acabou entrando no olho do furacão sem perceber.”

Seus detratores, zombando, dizem que ela teve uma ‘crise de consciência’; seus aliados, que ela descobriu a diferença entre o essencial e o supérfluo, e escolheu o primeiro.

O fato é que o “Sud, o Pássaro Verde”, numa rua apertada do Jardim Botânico, é, em se tratando de Madame Sudbrack, uma segunda encarnação tão interessante quanto a primeira — ainda que sem os 25 empregados para servir 40 clientes de seu antecessor, onde um casal tipicamente gastava R$ 900 num menu degustação — sem o vinho.

No Sud, “simples porém honesto”, Roberta convida para um jantar intimista, sem holofotes, à beira de um forno a lenha. O restaurante sequer tem o nome na porta, e os comensais têm direito a uma das 12 mesas por ordem de chegada. Ricardo Freire, do Viaje na Viagem, definiu-o assim: “Sem placa, sem reserva, sem frescura”.
 
Em vez do menu degustação, prato para dividir. O prato mais caro? R$ 85.

Nesta oferta despojada, Roberta parece ter encontrado o mínimo denominador comum entre a chef e seus clientes: rico ou pobre, branco ou preto, todo mundo tem vó. 

A de Roberta — Dona Iracema — foi vó com V maiúsculo: criou a futura chef e foi sua inspiração por toda a vida. Numa conversa com o Valor, há seis anos, Roberta discorreu sobre sua maior infuência. “A vó sempre teve uma preocupação com a estética, colocar um mimo, uma folhinha para enfeitar, e limpar a borda do pratos. E é essa comidinha caseira a grande referência que a gente leva para a vida inteira.”
 
Não sei se se dona Iracema, que partiu este ano aos 96 anos, tinha um forno a lenha em casa, mas não há nada mais ‘casa da vovó’ do que um forno a lenha.

Os pratos do Sud — boa parte paridos pelo forno — transpiram uma caipirice desavergonhada: ‘burrata, milho assado e linguiça artesanal’, ‘terrine caipira da casa’, ‘arroz caipira de frutos da terra’…. Tudo com gosto de vó. De rapa de tacho.

O nome do restaurante tem origem no acaso — se é que existe acaso. Durante a obra, Roberta comprou um puxador de porta no formato de um pássaro verde. Numa viagem a Paris, um pássaro verde também seguiu Roberta nos Jardins das Tulherias. Na volta ao Brasil, o triunfo da contingência: um pássaro havia feito um ninho dentro do restaurante, e suas cinco ninhadas nasceram na cor verde. 

Ducasse, um mestre que também ressignificou sua cozinha usando seu próprio ’suplemento da alma’, diz que os cozinheiros, no fundo, são ‘marchants de souvenirs’ (mercadores de memórias). 

No Sud, as memórias de Roberta são simples, humanas e delicadas, e nutrirão a alma de quem estiver, como ela, pronto para um novo começo.

 
 
O Sud o Pássaro Verde abre de terça a sábado, de meio-dia às 21 horas (em janeiro, até 22 horas). 
Endereço: Rua Visconde de Carandaí, 35, Jardim Botânico, Rio de Janeiro.