Numa decisão que rompe com o costume brasileiro de colocar a burocracia no altar (e o cidadão, de joelhos), uma juiza do Rio concedeu uma liminar liberando o funcionamento do Uber — e repreendeu o poder público por se colocar a serviço de grupos de interesse.
A decisão da juiza Monica Ribeiro Teixeira, da 6ª Vara de Fazenda Pública do Rio, veio nove dias depois que o prefeito Eduardo Paes (PMDB) assinou uma lei municipal que proibia o Uber. (Dias antes, outro juiz — Bruno Vinícius Da Rós Bodart, da 1ª Vara de Fazenda Pública do Rio — havia concedido liminar a um motorista do Uber, determinando que órgãos estaduais e municipais deixassem de impedir a atuação do motorista.)
Numa decisão que transpira conhecimento teórico e prático de economia, a juiza ‘melou’ a manjadíssima prática brasileira de se usar a necessidade de regulação para sufocar a concorrência.
Disse ela, na liminar: “A atividade empresarial dos impetrantes (Uber), por meio de plataforma tecnológica, conecta prestadores e consumidores de serviços de transporte individual de passageiros, sendo importante ser questionada a existência de legítima justificativa para que o Estado, por meio de regulação, impeça tal atividade.”
E, numa aula que só faltou mencionar o economista austríaco Joseph Schumpeter — cujo conceito de ‘destruição criativa’ propõe que as novas tecnologias tiram espaço das anteriores, o que constitui o ‘fato central do capitalismo’ e gera progresso — a meritíssima complementou:
“Pretendem a Câmara Municipal e o prefeito sinalizar que nenhuma inovação é bem-vinda se acompanhada da destruição de privilégios, retirando da sociedade a prerrogativa de trilhar, em livre mercado, o caminho do progresso. Felizmente, vivemos em um Estado de direito, no qual os governantes podem muito, mas não podem tudo. Em especial, não podem violar as liberdades garantidas pela Constituição para permitir que alguns poucos privilegiados se beneficiem da falta de opção artificialmente imposta ao consumidor.”
(É ou não é uma liminar para recortar e emoldurar?)
No Brasil e no mundo, o debate sobre a legalidade do Uber tem sido mal formatado. Ora os taxistas dizem que o Uber deveria ser proibido por não oferecer aos passageiros a mesma ‘segurança’ que os táxis oferecem a seus usuários, ora alegam uma falta de igualdade de condições, já que os taxistas pagam uma série de taxas e impostos, ora apelam à questão dos empregos de taxistas ‘destruídos’ por uberianos (muitos dos quais, aliás, são ex-taxistas).
Neste contexto, a decisão da juiza Teixeira é a primeira a formatar o debate da forma que mais interessa à sociedade: aquele que opõe a fúria reguladora — e castradora — do Estado (agindo no interesse de grupos bem organizados) contra o direito de escolha de cidadãos e consumidores.
Escondida no banco de trás do debate, claro, está a agenda pessoal dos prefeitos, que preferem ser descritos como neandertais antiprogresso do que irritar os taxistas de suas cidades — um segmento disposto a falar cobras e lagartos dos prefeitos para todos os passageiros e a fazer protestos que param o trânsito. Em sua decisão, a juiza chamou a lei municipal do Rio, sancionada por Paes, de “exemplo lastimável” de como os governantes “curvam-se à pressão” de grupos de interesses particulares em detrimento do interesse público.
A decisão da juiza Teixeira é mais um episódio em que o Brasil — sem poder contar com a liderança dos poderes executivo e legislativo — avança em um tema delicado e controverso por meio da coragem do Judiciário.
A clareza intelectual e de propósito da juiza contrasta com a mentalidade obscura e barroca dos prefeitos de São Paulo, Fernando Haddad, e Paes, que pretendem copiar conceitos do Uber e criar ‘novos’ serviços de transporte, supostamente melhores que os táxis atuais, numa tentativa patética de reinventar a roda.
Na quinta-feira, Haddad anunciou a liberação de 5.000 alvarás para carros que vão operar um novo tipo de transporte: não usarão taxímetro, terão que ser pretos e oferecer ar condicionado. Serão parecidos com o Uber, mas só estarão disponíveis (mediante sorteio) para quem já possuir o chamado Condutax, um cadastro de taxistas feito na Prefeitura.
Prefeito: por que, em vez do original, temos que usar essa cópia paraguaia?
No Rio, o secretário municipal de transportes, Rafael Picciani, disse ao G1 que a Prefeitura discute, há meses, “a criação de um aplicativo que se assemelha ao Uber (é inevitável falar), e que traz essa oportunidade da população avaliar, criticar e essa avaliação chegará ao poder público, que poderá tomar uma atitude, diferente de uma empresa privada”.
Secretário: quer dizer que o Estado vai fazer melhor que uma ‘empresa privada’? E na hora de ‘avaliar e criticar’, por que é mesmo que precisamos de intermediários?