Estrutura de vidro suspensa, o Instituto Moreira Salles flutua como uma palafita acima do mar revolto de gente e carros da Avenida Paulista, convidando o pedestre a entrar. Leve, renuncia a muros e grades.

O projeto venceu um concurso internacional, e o prédio, inaugurado há um ano, projetou o escritório Andrade Morettin como um dos mais criativos e inovadores da atual geração.

São raros os arquitetos nacionais com um portfólio tão variado: a casa de Alain Belda, do Warburg Pincus, no Jardim Europa, e a de Patrice Etlin, o chefe do Advent, no Jardim Paulistano, além de prédios comerciais inovadores com a incorporadora Idea!Zarvos.

O portfólio de projetos institucionais inclui, além do próprio IMS, o IMPA, no Rio, a reforma da Faculdade de Medicina da USP, escolas particulares como a Beacon e até um conjunto habitacional para a Prefeitura de São Paulo.

10542 cf8ef95a d12b 78fe a545 edfab8568e89Vinícius Andrade e Marcelo Morettin foram colegas na FAU, a Faculdade Arquitetura e Urbanismo da USP, e fundaram o escritório em 1998. Integram o time outros dois sócios: Marcelo Maia Rosa, filho do artista plástico Dudi Maia Rosa, e Renata Andrulis.

Apesar de herdeiros da chamada Escola Paulista – movimento modernista fundado por Villanova Artigas e conhecido pelo uso predominante do concreto – os Andrade Morettin se destacam pelos materiais industriais e se inspiram no jeito de morar típico de países tropicais (como casas elevadas para resistir a inundações), tirando o máximo proveito da ventilação e da luz natural.

Em muitos de seus projetos, as construções recebem uma espécie de segunda pele, em vidro ou metal, envelopando-as e protegendo-as de mudanças bruscas de temperatura.

Paradoxalmente, essa preferência pelo vidro e o concreto resulta em construções quase orgânicas, integradas ao ambiente.

De forma ainda intuitiva, esses conceitos estavam presentes quando os Andrade Morettin começaram, há 20 anos, já fazendo casas fora da caixa. Na época, porém, as tecnologias construtivas estavam aquém das suas ideias, e não era simples tirá-las do papel.

Vizinho e amigo de infância de Andrade, André D’Alessandro encomendou uma das primeiras casas do escritório: num terreno estreito ladeado por duas casas altas no Morumbi. Para garantir a entrada de luz, foi projetada uma coluna de vidro translúcida de 1,5 tonelada e dois pés direitos de altura, localizada no centro da casa e que se desloca pra cima e para baixo com o auxílio de uma grua. Quando o morador eleva a coluna de vidro, o andar de baixo se amplia e se integra com o jardim. “O projeto é lindo e ficou o máximo, mas foram quatro anos de construção e muita dor de cabeça”, lembra o cliente.

10541 54bae3e8 c033 aa09 8487 c6aab5941c3eDesafios de quem está à frente de seu tempo. “Eles não estão em uma zona de conforto. Dão sempre um passo além na própria trajetória”, diz Fernando Serapião, o crítico de arquitetura e editor da Monolito.

Apesar de alguns clientes com muitas casas decimais, os Andrade Morettin não querem ser uma grife de luxo como Isay Weinfeld ou Marcio Kogan, que assinam projetos como o Hotel Fasano e casas da Fazenda Boa Vista.

De formação mais humanista, se interessam em produzir uma arquitetura de qualidade que dialoga com a cidade e contribui para melhorar o espaço urbano.

Abaixo, a conversa de Marcelo Morettin com o Brazil Journal.

 

Como definir a linguagem arquitetônica de vocês?

Foi aos poucos que começamos a entender qual a nossa linguagem e maneira de fazer. Uma das coisas que nos interessa muito é a arquitetura dita popular, vernacular. Aquela arquitetura mais espontânea. Há uma faixa geográfica do mundo, que tem a ver com a nossa, de clima temperado e tropical úmido, onde há uma recorrência de algumas maneiras de construir.

Um exemplo?

As palafitas. Você encontra desde o litoral até a Amazônia, e também em parte da África, no Vietnã… São construções elevadas. Muitas vezes tem a ver com a água. Boa parte do ano tem muita chuva, calor. O vento é bem vindo. Usam materiais leves e muito sombreados. Não vale a pena conservar o calor ou o frio, como se faz nos países ibéricos, que é de onde vem boa parte da nossa formação erudita. Paredes grossas e pátio interno não funcionam muito bem pra gente no Brasil.

Vocês são formados na FAU, mas não são brutalistas, preferem materiais industriais ao concreto. Como vocês lidam com essa herança da FAU?

Temos uma formação super erudita, somos herdeiros da Escola Paulista. Mas a gente tentou trilhar caminho próprio por meio dessa pesquisa, e com o tempo você começa a fazer isso melhor. Hoje o que a gente faz tem a ver com essa mistura.

As pessoas costumam dizer que o pessoal do Mackenzie tem uma veia mais comercial e os uspianos são mais humanistas, de esquerda. Como vocês se situam nesses rótulos?

A gente tenta fazer uma conciliação. Na nossa época de faculdade, falava-se muito disso. Que do Mackenzie sai um arquiteto mais preparado, e que os da FAU são mais humanistas. Acho que isso é meio passado. Dos quatro sócios do escritório, o único que não fez USP, o Maia Rosa, que fez Mackenzie, é talvez o mais intuitivo. É o cara do desenho.

E em termos de atuação profissional?

A gente tenta conciliar e romper preconceitos do tipo que arquitetura feita para o mercado é ruim. Ou que a arquitetura pública só deve ser feita por determinado grupo de arquitetos. A gente transita em todos os meios. Se olhar o nosso portfólio, fazemos desde a casa particular até o projeto urbano. O que nos interessa é fazer boa arquitetura. E mostrar que isso é possível. No passado, como mostra o livro “São Paulo Nas Alturas”, do Raul Juste Lores, essa ruptura não existia. Os bons arquitetos estavam fazendo Higienópolis, o centro de São Paulo. Mas não acho que somos só nós que estamos trabalhando dessa maneira, rompendo essas barreiras. Claro que ainda existe muito sectarismo.

Mas mesmo a chamada geração General Jardim, são poucos os que fazem trabalho para incorporadoras.

Faltam oportunidades. São poucas as construtoras que trabalham com escritórios de arquitetura. A gente começou relativamente cedo. Fizemos em 2004 o primeiro projeto para Idea!Zarvos. Mas na década de 60, essa era a regra. Nos anos 80, 90, o perfil mudou e a qualidade da arquitetura em geral, dos projetos das incorporadoras, despencou. Nos anos 2000 isso começa a ser retomado, mas ainda muito devagar. A demanda é pequena. E não é fácil tocar um projeto comercial. As leis urbanas são complexas – e até pouco tempo, limitantes.

10562 cd2e6c1f f74a 0106 e69e 3b9f6b38434fO concreto aparente tem lugar na arquitetura de vocês.

A gente usa. No IMS tem concreto. Tem um lugar. Mas a gente é muito pouco ideológico. Não temos a premissa de usar concreto de início. Estamos interessados em uma arquitetura mais leve: metal, madeira, painéis. Uma arquitetura que flutua. O concreto funciona do outro lado: traz para baixo. O IMS é aquela caixa de vidro, é metálica, flutua. Mas o lugar onde está a infraestrutura do prédio, os elevadores, banheiros, é de concreto. Precisava de uma âncora, um contraponto. Ali o concreto é bem-vindo. O concreto como símbolo de uma maneira de fazer arquitetura, que tem a ver com a Escola Paulista, a gente gosta. São os nossos pais. Só que a gente prefere usar isso de outra maneira, porque o mundo mudou. Estamos tentando trilhar um caminho que tem a ver com essa herança, mas que é próprio. A gente não acha que tem que renegar. Não tem ruptura. Há um reconhecimento dos valores do passado. Mas desde cedo abrimos o olho para o que é feito lá fora. Nossa geração e também a que vem depois tem interesse no que está sendo feito fora. Antes da gente, o pessoal era muito fechado.

Durante muito tempo, a preferência pelo concreto tinha a ver com a baixa qualificação da mão de obra. Vocês enfrentam dificuldade para trabalhar com materiais mais especializados?

Nosso interesse por uma arquitetura mais leve tem muito a ver com novas tecnologias. Ela pede materiais construtivos mais elaborados. É mais sofisticado fazer uma estrutura metálica do que construir em alvenaria. A maioria das coisas é feita fora do canteiro de obras. No limite, a gente está mais interessado em projetar tudo com o maior cuidado e as coisas serem feitas na fábrica, com tecnologia, precisão, requinte de detalhe e garantia. E só a montagem é feita no canteiro. Isso exige uma cadeia produtiva melhor. E o Brasil hoje está mais preparado.

Muito mais do que quando vocês começaram, há 20 anos….

Ainda não é o que a gente gostaria. Mas hoje tem muito mais materiais disponíveis. Quando a gente começou, era difícil conseguir um caixilho bacana: ou eram aquelas de linha, muito simples, ou não desempenhavam. O arquiteto tinha que desenhar, e o serralheiro fazia sob medida. Hoje existem inúmeras empresas que fornecem um caixilho fantástico. É um mundo pós-fordista: industrial, mas customizável. Ainda é caro, mas já é uma realidade. Tem que ver se faz sentido economicamente, dependendo do projeto. Antes não fazia.

Vocês fazem uma arquitetura que dialoga com a cidade, prédios sem grades e muros, de uso misto. Isso está entrando na pauta das incorporadoras?

A convivência está entrando na pauta. A maioria das incorporadoras ainda não está interessada. Mas agora tem mais gente falando nisso. O jornalismo tem trazido essa pauta: vamos fazer da cidade um lugar melhor. E como o plano diretor incentiva, há um benefício para o negócio: a loja é um benefício, é uma área que se pode fazer a mais. Começa-se a criar um círculo vicioso. A loja vai alugar bem. É um serviço bom pro bairro. Isso é novo e não é todo mundo que está afim de fazer. Mas tem bastante projeto na fila e isso tende a multiplicar.

O que mudou com o novo Plano Diretor (de 2016)?

A lei permite uma arquitetura mais interessante, que se situa na cidade de forma mais bacana. Que leva as pessoas para a rua, dá mais segurança. A lei é muito boa pois promove mudanças no espaço urbano sem investimento público. Ao contrário. A regra incentiva e a sociedade vai cuidar de construir. Quando você é desincentivado a fazer esse tipo de coisa, a cidade se retrai e surgem os guetos. Essa dimensão pública de que o que a gente faz tem impacto na vida das pessoas está muito no nosso radar. No final, o que queremos é fazer boa arquitetura, com sentido e qualidade tanto para quem vai usar quanto para quem encomenda.

Há uma grande discussão de adensamento do Jardim Europa. O baixo adensamento acaba espalhando a cidade pra bem longe. Qual a sua visão sobre isso?

Sou a favor de adensamento. Uma cidade compacta, mais densa, é, como regra, melhor: você reduz distâncias, tem uma série de qualidades. Não são só os arquitetos que defendem isso. O economista Edward Glaeser [autor de “O Triunfo da Cidade”, publicado no Brasil pela BEI Editora] fala disso. A questão é como se faz isso. Será que a cidade tem que ser homogeneamente densa? Isso acolhe diversidade? Querer passar por cima dos Jardins não está certo. O modelo é ruim, é. Mas tem que considerar a história. Será que a cidade consegue se adensar sem acabar com a área verde?

Não se trata de uma questão ideológica, mas de desenho urbano. Existem eixos [nos Jardins] que poderiam ser adensados. A Vila Madalena, que era um bairro operário, passou por isso. Em 1972 surgiram os espigões, depois permitiram adensamento mais baixo. E agora não pode adensar, só na parte perto do metrô. Acho errado. A máxima do plano diretor é boa, mas falta um olhar para a escala da quadra. Sou a favor de eixos de adensamento. Mas a discussão é tudo ou nada. Ficar intocado ou liberar o zoneamento. Um lugar encravado a tanto tempo não comporta uma atitude assim tão radical. Falta a calibragem da lei ao nível da quadra. Estamos inaugurando um prédio da Zarvos na Vila Madalena que foi aprovado na lei antiga. Hoje não poderia mais ser feito. Num lugar central da Vila, em uma rua que comporta. Os Jardins têm muita qualidade e muitos problemas.

Há muitas casas vazias no Jardim Europa, e uma nova geração que não quer mais casas tão grandes. Acha que poderia transformar terrenos em mini condomínios?

Acredito que esse tipo de pressão – o uso que a nova geração vai fazer das casas – cria uma demanda mais autêntica para o destino do bairro do que essas que são muito ideológicas. “Vamos defender a propriedade ou vamos acabar com o rico?” A discussão está indo pra isso.

Acredito que é um modelo de cidade que vai interessar menos. Mas não é a toa que a região é tombada do ponto de vista paisagístico. Precisamos discutir o que fazer com uma área tão central da cidade, sem esse embate ideológico. Faz sentido ter eixos de serviços. Há demanda para isso. É que nem a diagonal do canteiro, quando as pessoas fazem o caminho alternativo. Tem uma sabedoria aí. Algumas áreas poderiam virar espaço público, para que a região não fique tão exclusiva.

SAIBA MAIS

LIVRO: São Paulo nas alturas

TEATRO: Para o Cultura Artística, um terceiro ato

ARTES: O Pollock da discórdia