Se te pedissem para imaginar a cara da primeira mulher a se tornar milionária nos EUA, ainda na década de 1910, você certamente não imaginaria uma mulher negra.

Mas para entender como Sarah Breedlove venceu dois preconceitos ao mesmo tempo — o de gênero e o de cor, mais de 100 anos atrás — você não precisa de imaginação: basta dedicar algumas horas da sua quarentena para ver “Self Made”, a série da Netflix que conta uma das maiores histórias de empreendedorismo do mundo.

Os quatro capítulos (é curtinha!) mostram como Sarah Breedlove, tendo nascido numa plantation de algodão na Louisiana, ganhou tanto dinheiro que acabou vizinha de John D. Rockefeller, uma mobilidade social fantástica mesmo para padrões americanos.
 
Filha de escravos, Sarah foi a primeira dos cinco irmãos a nascer livre. Ficou órfã aos sete; trabalhou como empregada doméstica e lavadeira. Casou-se aos 14 e teve uma filha aos 18. Seu segundo marido foi CJ Walker, um publicitário que fazia anúncios de jornal.

Mas quando fez 40 anos, Madam CJ Walker já estava ganhando mais dinheiro que a maioria dos homens brancos, graças a seus produtos de cabelo para mulheres negras e sua capacidade de empreender.  O exército de vendedoras contratado pela Madame deu a outras negras a chance de subir na vida.

Empreendedores vão se identificar com várias cenas: a dificuldade de conjugar o casamento com uma vida de trabalho intenso; os perigos da espionagem industrial, e o equilíbrio delicado dos incentivos. (Em dado momento, a empresária faz um acordo para vender seus produtros numa rede de drogarias; revoltadas, suas vendedoras de porta em porta ameaçam ir embora — um “conflito de canais” que Natura e Boticário já venceram.)

A série é baseada no livro “On Her Own Ground: The Life and Times of Madam C.J. Walker” (2002), escrito por A’Lelia Bundles, uma jornalista americana que é tataraneta adotiva de Madame CJ Walker.  A empreendedora é interpretada por Octavia Spencer, que ganhou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por seu papel em “The Help” (no Brasil, “Histórias Cruzadas”).

“Self Made” também aborda lateralmente temas como o colorismo (a discriminação pelo nível de pigmentação da pele, mesmo entre membros da mesma raça), o papel do cabelo na vaidade da mulher negra, sempre confrontada com um ideal de beleza europeu, a (des)igualdade econômica entre os gêneros, e até a homossexualidade, que, naquela época, era tabu para qualquer raça.

Em alguns pontos, a série diverge da realidade.  Na ficção, Addie Munroe — de pele mais clara — rejeita contratar Sarah como sua vendedora supostamente porque ela era “feia” ou tinha pele “muito escura.”

Mas na vida real, Addie foi Annie Malone, outra empresária negra que foi pioneira no ramo de produtos para cabelo. Annie e Sarah tinham o mesmo tom de pele, e Sarah trabalhou como vendedora de Annie antes de lançar seu próprio negócio.

Segundo o site Mundo Negro, Annie Malone — que também ficou milionária — deu uma contribuição à indústria de beleza, ao ativismo negro e ao empreendedorismo tão relevante quanto Sarah. “Nos EUA, algumas feministas e influenciadoras negras estão protestando a forma como Annie foi apresentada na série, “quase como uma vilã da Disney,” diz o site. 

“Self Made” pode ter errado ao fazer certas escolhas, mas mais importante ainda são as reflexões que inspira sobre o Brasil.

É uma vergonha que, 100 anos depois de Madame CJ Walker quebrar barreiras intransponíveis para aquela época, não haja sequer um CEO negro nas empresas listadas do Brasil — bilionários negros, então, nem se fala. Da mesma forma, é triste que mulheres e negros estejam dramaticamente sub-representados nos conselhos de administração.

A justificativa de que “faltam pessoas qualificadas para preencher estes cargos”, é claro, tem a ver com a desigualdade de oportunidades.

No Brasil, ainda é utopia sonhar que meninos da Rocinha e do Leblon frequentem a mesma escola, ou que os filhos do Capão Redondo e dos Jardins tenham currículos minimamente equivalentes na hora de pedir o primeiro emprego.  Quando a pele é escura, o gap é sempre maior.

Mas não há ideal humano mais nobre e mais urgente do que reduzir ao máximo essa diferença.  E talvez não haja hora mais propícia para se pensar em como fazer um mundo melhor do que quando estamos todos em casa, nos perguntando o que afinal deu errado.