Um homem passa mal no voo entre Tomsk e Moscou. Começa a gritar – um uivo dolorido, constante, que alarma as comissárias de bordo. O avião faz um pouso de emergência em Omsk.

O homem que agonizava era o advogado e ativista russo Alexei Navalny, hoje com 47 anos. Principal liderança da oposição a Vladimir Putin, ele deveria ter morrido naquele 20 de agosto de 2020. Havia sido envenenado com Novichok, um poderoso agente nervoso fabricado só na Rússia, para uso em ações clandestinas do FSB, a agência de segurança do país.

Transferido para um hospital em Berlim dois dias depois de ser internado em Omsk, Navalny sobreviveu. Sempre desafiador, retornou à Rússia em janeiro de 2021. Foi preso ao desembarcar e hoje cumpre pena em uma prisão de segurança máxima. O governo russo alega que ele violou os termos de uma condenação anterior por fraude – um processo irregular, claramente movido para intimidar um dissidente.

Os acidentados meses do envenenamento à prisão formam o núcleo de Navalny, filme vencedor do Oscar de documentário em longa-metragem deste ano.

O timing para assistir esse excelente documentário – dirigido pelo canadense Daniel Roher e disponível na HBO Max – não poderia ser mais apropriado, dado o que aconteceu esta semana com Yevgeny Prigozhin. O chefão do grupo mercenário Wagner morreu quando o avião em que viajava explodiu em pleno ar.  Sounds familiar?

Navalny ganhou fama por atacar a corrupção russa em vídeos que eram vistos por milhões no YouTube. Sua rede de apoiadores e ativistas – da hoje banida Fundação Anticorrupção – levantava informações de todo o país. Ele era, na definição do enxadrista Garry Kasparov, “a vanguarda dos dissidentes de dados (data dissidents)”.

Em um rápido retrospecto da carreira política de Navalny, o documentário mostra um comício em que ele puxa a multidão com o coro de “Putin ladrão”.

Sorridente e provocador, Navalny demonstra um total domínio de cena. Entende-se porque ele era um perigo para um regime que recorre a eleições fraudadas para manter uma fachada democrática. “Seu carisma é complementado por um senso de humor sardônico que é ideal para minar a propaganda cinzenta e desprovida de humor do Kremlin”, diz Kasparov no livro Winter is Coming.

Em agosto de 2020, Navalny foi à Sibéria gravar seu programa do YouTube. Das várias excursões que fez pela Rússia, esta foi das mais tranquilas: nenhum policial interrompeu suas gravações. Mas foi lá que o envenenaram.

Em Omsk, onde o ativista foi internado, os médicos não confirmaram o envenenamento, levantando a hipótese de algum distúrbio metabólico. Yulia, a bela e determinada mulher de Navalny, confrontou-se com a administração do hospital para conseguir que o marido, ainda em coma, fosse transferido para a Alemanha, onde atestou-se o envenenamento com uma nova variedade de Novichok.

Logo que teve alta, Navalny foi se recuperar em uma pequena vila alemã. O documentário aproveita essa passagem para conquistar a simpatia do espectador: vemos o inimigo de Putin dando cenouras para um pônei e jogando Call of Duty no celular.

Mas o chamado da política logo se impôs: Navalny firmou uma parceria com o búlgaro Christo Grozev, da Bellingcat, uma organização jornalística especializada em investigações online. Por meio de registros telefônicos, Grozev conseguiu identificar os agentes da FSB que viajaram de Moscou a Tomsk no mesmo período que Navalny.

Com o telefone de seus prováveis algozes em mãos, Navalny ligou para os agentes que podem tê-lo envenenado, fazendo-se passar por um funcionário do Kremlin encarregado de preparar um relatório sobre o fracasso da tentativa de homicídio.

Um químico especialista em Novichok caiu na performance de sua vítima e deu detalhes da operação. O veneno foi inserido em uma cueca de Navalny. A gravação da conversa foi liberada em dezembro de 2020, no mesmo dia em que Putin dava uma coletiva de imprensa. O ditador sugeriu que era tudo uma armação da CIA.

Infelizmente, o documentário não se encerra com esse triunfo de Navalny. As tensas cenas finais acompanham a viagem de Navalny de volta à Rússia, onde seria preso.

No início do filme, Daniel Roher pergunta a Navalny que mensagem ele deixaria para o povo russo no caso de ser morto. A princípio, Navalny foge da questão. Diz desejar que o filme seja um thriller, não um memorial chato.

Mas concorda em deixar essa mensagem, que acabou sendo a cena final do documentário. Navalny conclama seus compatriotas a não desistirem da luta.

“Lembrem-se que nós temos um imenso poder,” diz.

Palavras belas, mas idealistas. Navalny segue encarcerado e há notícias de que sua saúde está debilitada. A oposição russa ainda não conseguiu articular uma ameaça real à ditadura.

A maior ameaça que Putin sofreu este ano não veio de forças democráticas, mas de um exército mercenário amotinado. E o líder dessa revolta acaba de morrer em uma suspeita queda de avião.