Em dezembro de 1904, a Revolta da Vacina transformou o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, em uma praça de guerra. Prédios públicos foram saqueados, bondes, incendiados, e policiais e manifestantes trocaram tiros nas ruas. O estopim foi a política de vacinação compulsória contra a varíola, mas a verdadeira origem da crise estava na incapacidade de comunicação das autoridades da época.
 
Pouco importou naquele momento que o Rio vivesse um surto de varíola, com quase sete mil contaminados. O médico e sanitarista Oswaldo Cruz, pioneiro no estudo de doenças tropicais e então Diretor Nacional de Saúde Pública, foi convertido em “inimigo do povo” pela opinião pública.
 
Quase 115 anos depois, o Brasil arrisca transformar outra reforma em revolta — e de novo, por desinformação. Desta vez, a crise está no sistema previdenciário.
 
Alterar regras da Previdência não é tarefa simples em nenhum lugar do mundo. Só no ano passado, Inglaterra, França, Rússia, Nicarágua e Porto Rico viveram episódios de violência e protestos depois que autoridades tentaram mexer nas aposentadorias públicas. É até natural que seja assim. Não é fácil abrir mão de benefícios individuais, sobretudo quando não ficam claras a urgência e as vantagens futuras do sacrifício no presente.
 
No Brasil, a dificuldade é ainda maior porque nosso sistema previdenciário é cheio de brechas e exceções direcionadas a pequenos grupos com grande poder e influência. A complexidade do tema favorece a disseminação de informações falsas e lógicas simplistas. Neste cenário, políticos e especialistas comprometidos em construir um modelo de Previdência mais justo e sustentável veem seus esforços pouco valorizados e são atacados injustamente. É nosso dever – nós, a opinião pública – rejeitar essa conjuntura que desincentiva a tomada de atitudes responsáveis. Cabe a nós defender e encorajar quem tem ânimo para estar na vanguarda das mudanças difíceis.
 
A eclosão da Revolta da Vacina está diretamente ligada à negligência das autoridades da época em se comunicar com a opinião pública. Grande parte das pessoas tinha uma previsível rejeição à ideia de ser inoculada pelo vírus da doença, método até então pouco conhecido no Brasil. Sem campanhas educativas, se espalharam tão rápido quanto a própria epidemia os boatos de que a intenção do governo era “exterminar os pobres”. Não por acaso, falácia frequente em algumas das fake news difundidas atualmente sobre a reforma da Previdência.
 
A teoria de que a reforma da Previdência é “contra os pobres” não se sustenta diante da própria dificuldade em fazer com que a pauta avance. Como qualquer um que conhece Brasília sabe, os pobres não têm lobby no Congresso. Infelizmente, se o principal interesse contrariado fosse o da população mais pobre, seria fácil aprovar a reforma. O Brasil é um país pobre. Quase 80% da população vive com três salários mínimos por mês. O interesse dos mais pobres é, na verdade, o da maioria dos brasileiros. É o interesse público. Difícil é mexer com os interesses das minorias organizadas, como alguns setores da economia, sindicatos e o funcionalismo. Estes sim contam com intenso lobby e fazem pressão sobre deputados e senadores.
 
Foi pensando nisso que, no fim de março, organizamos em Brasília o RenovaBR Ideias. Um encontro aberto a todos os congressistas em mandato, com objetivo de debater a situação previdenciária na presença de Paulo Tafner, um dos maiores especialistas do assunto no Brasil. É possível que tenha sido o primeiro evento sobre a Previdência direcionado a parlamentares que não defendia o interesse de nenhum grupo específico. Uma conversa orientada por dados e evidências, motivada pela urgência da pauta e pelo impacto que ela terá no funcionamento do Estado pelos próximos anos.
 
Conquistar um modelo previdenciário mais justo e sustentável afeta diretamente o orçamento que teremos à disposição para segurança, educação, saúde e outras áreas essenciais. Impacta nossa economia e geração de empregos. Determina, enfim, se o Governo poderá cumprir suas obrigações. Mesmo assim, assistimos à incapacidade de articulação do governo e à irresponsabilidade da oposição que tenta obstruir a pauta, como testemunhamos ontem na CCJ da Câmara. Quem sai perdendo é o futuro do Brasil.
 
Nossa aposta ao criar o RenovaBR foi que, se pessoas sérias e qualificadas tivessem a chance de entrar na política sem depender do apoio de alguma dessas minorias poderosas – sejam empresas, entidades de classe ou velhas estruturas partidárias –, elas teriam liberdade para atuar em nome do interesse público. Até aqui, a aposta tem dado frutos. Mas essas novas lideranças, assim como todos os políticos e especialistas dispostos a lidar com um tema tão complexo quanto à Previdência, precisam contar com nosso apoio.
 
Depois de seis dias seguidos de tumultos, em 16 de dezembro de 1904, o governo foi obrigado a recuar da política de vacinação compulsória. Apesar de parte da população do Rio de Janeiro ter sido imunizada contra a varíola, uma nova epidemia atingiu quase 10 mil pessoas em 1908. A gravidade do surto fez com que as pessoas comparecessem em massa aos postos de vacinação. Dois anos depois, nenhum caso de varíola foi registrado na cidade. Só então o Brasil reconheceu o valor de Oswaldo Cruz. A reforma da Previdência terá que acontecer de uma forma ou de outra. Nosso papel é apoiar quem trabalha para tornar o caminho mais curto e menos traumático.
 
Na foto acima, a Gazeta de Notícias de 15 de novembro de 1904 noticia o caos da Revolta da Vacina.
 
Eduardo Mufarej é fundador do RenovaBR.