Ganância, poder e corrupção desmedidos são as estrelas de Dirty Money (traduzida como “Na Rota do Dinheiro Sujo”), recém-lançada pela Netflix.

Em seis episódios, a série documental/investigativa criada por Alex Gibney (vencedor do Oscar por “Taxi to the Dark Side”, de 2007) faz a autópsia de escândalos envolvendo corporações globais, violações ao meio ambiente, golpes na indústria farmacêutica e no mercado americano de empréstimos consignados, colocando na berlinda gigantes como a Volkswagen e o HSBC, e — a cereja do bolo indigesto — um raio-X das Organizações Trump desde os anos 80.

Aviso importante: esse texto contém spoilers. Ainda assim, você vai querer ver a série toda. 

Nada do que se revele aqui substitui a força dos depoimentos — de jornalistas, promotores de Justiça, executivos e consumidores vitimados — colhidos ou recuperados pela produção. O clichê ‘soco no estômago’ se impõe. Por outro lado, se é que isto é consolo para alguém, a série nos lembra que o Brasil não detém o monopólio da falcatrua e da impunidade.

Quando se trata de organizações financeiras transnacionais sistemicamente relevantes, o risco de contaminação pode pesar mais na balança dos governos do que a vontade de punir. A vitória das decisões políticas sobre a Justiça pura e simples aparece, por exemplo, em “O Banco dos Cartéis”, episódio que detalha a relação entre o HSBC e o tráfico de drogas no México. 

As investigações realizadas por promotores americanos revelaram que o banco manipulava os filtros de transferências eletrônicas para burlar a proibição de atuar para máfias na lista negra da Ofac (Agência de Controle de Ativos Estrangeiros dos EUA). O HSBC expandiu suas operações em território mexicano comprando bancos menores como o Bital e absorvendo carteiras de clientes criminosos.

No final, o caso acaba em pizza: o Departamento de Justiça americano fecha um acordo de US$ 1,9 bilhão com o HSBC, valor correspondente a cinco semanas de lucro do banco. Nenhum executivo é sequer acusado.

O episódio de abertura da série mostra o ‘dieselgate’, o escândalo de emissões poluentes que atingiu a Volkswagen em 2015. A Volks equipou 11 milhões de carros a diesel com um programa capaz de falsificar a medição de suas emissões poluentes. 

Gibney, o produtor da série, foi um dos consumidores que compraram a propaganda enganosa de sustentabilidade dos modelos a diesel da VW. Pessoalmente motivado, ele narra parte do episódio em primeira pessoa. Aparece dirigindo UM VW Jetta a diesel — que chama de ‘máquina assassina’ — e a certa altura chega a xingar, “Fuck Volkswagen”. Como se sabe, a Volks foi obrigada a um gigantesco ‘recall’ para recomprar cerca de 500 mil carros só nos Estados Unidos.

Os polêmicos testes feitos com macacos para medir o impacto das emissões de gases nos veículos da marca alemã também aparecem no documentário. Revelados em 2014 pelo The New York Times, eles voltaram às páginas dos jornais esta semana e levaram ao afastamento do chefe de relações públicas da VW, Thomas Steg. Segundo o executivo, a ideia inicial era fazer o teste em humanos. Dirty Money mostra imagens de macacos trancados em jaulas, assistindo a desenhos animados enquanto inalam fumaça venenosa emitida por carros da marca.

Mas o grand finale, e talvez o episódio mais chocante da série, é o que dedica 77 minutos a desconstruir a imagem de Donald Trump como homem poderoso e bem sucedido.

No episódio “The Confidence Man” — cuja melhor tradução seria “O Golpista” — o presidente americano é descrito por jornalistas, velhos amigos, desafetos e ex-funcionários com palavras pouco lisonjeiras: marqueteiro, ‘showman’, trapaceiro ou simplesmente um ‘nobody’ no mundo dos negócios.

O mantra usado por Trump em sua campanha — Make America Great Again — era, segundo o documentário, o mesmo usado por Trump para vender sua imagem a pequenas empresas, prometendo transformá-las nas melhores companhias americanas.

Ex-repórter do Times e autor da biografia “Trump Nation: The Art of Being The Donald”, Tim O’Brien diz que o presidente americano sempre tentou vender o mito de que criou sua fortuna do nada, enquanto na prática não passou de um herdeiro mimado que faliu cinco vezes – ele descreve Fred Trump, o pai, como o autêntico “self made man” da família.

A ideia do episódio é mostrar que Trump forjou sua imagem na mídia. Mesmo nos piores momentos ele se manteve nos holofotes e nas colunas sociais. Valeu até estrelar propaganda do McDonald’s. A grande virada veio com o reality show O Aprendiz, na NBC, em 2004.

Ironicamente, produtores do programa relatam que tudo ali era ‘fake’, inclusive o escritório da Trump Tower com tapetes vermelhos e uma mesa de reunião imponente, bem diferente do verdadeiro, com móveis de madeira em mogno lascado. O que eles não esperavam era que o programa alavancaria a imagem daquele que, para eles, era apenas um empresário excêntrico. Depois do show, Trump ficou marcado no imaginário de boa parte do público americano como um CEO de sucesso — um trampolim fundamental para sua eleição.

A revista Time questionou que tipo de retorno uma série de conteúdo indigesto, calcada no jornalismo investigativo, pode trazer para a Netflix, e disse que a produção representa mais riscos que ganhos potenciais para uma grande empresa de mídia.

Mas apesar do que muitos perceberão como um viés anticapitalista da série, Dirty Money oferece aos amantes do capitalismo a chance de observar e refletir sobre como o sistema precisa melhorar seus ‘checks and balances’.  É só por meio de melhoria contínua que o livre mercado poderá continuar gerando mais oportunidades e menos escândalos, e continuar afirmando sua eficiência. 

A série também serve como lembrete de que é o consumidor — e não a empresa — que deve estar no centro do sistema. A inversão deste valor é o que gera selvageria e pilantragem.

Dirty Money é para quem tem estômago e fome de escrúpulos.