Centralização política, descentralização econômica.

Essa é uma característica essencial para compreender as transformações na China, diz a economista Keyu Jin, professora associada da London School of Economics e autora do livro A Nova China – Para Além do Capitalismo e do Socialismo (Edipro, 320 páginas), que acaba de ser lançado no Brasil.

“A economia chinesa tem o ambiente mais competitivo do mundo atualmente,” Jin disse ao Brazil Journal. “É algo até excessivo, que prejudica a rentabilidade das empresas.”

Foi nesse ambiente de negócios, de apoio estatal e acirrada concorrência, que a China tem desafiado as análises de que não poderia ser um país inovador, diz a economista.

Keyu Jin ok

“Ninguém fica confortavelmente sentado na sua cadeira, como os europeus e, você sabe, alguns nos EUA,” afirmou Jin. “Na China, as pessoas sabem que, se não buscarem a inovação, estão fora do páreo.”

Nascida e criada na China, Jin, de 42 anos, fez seu segundo grau em Nova York e Economia em Harvard. Hoje mora em Londres, “com um pé no Ocidente e outro na China”, como costuma dizer. É filha do economista e político Jin Liqun, um ex-vice-ministro de Finanças da China.

Segundo Jin, o crescimento econômico acelerado já não é mais a obsessão no país, e sim a liderança em “áreas estratégicas emergentes,” como carros elétricos, baterias e inteligência artificial. “É o grande objetivo tecnológico da China.”

O que podemos esperar da ‘nova China’? 

Há uma nova geração de consumidores – e eles serão os líderes da economia. São radicalmente diferentes da geração anterior.

A China precisa encontrar um novo caminho em termos de questões sociais, segurança nacional e prioridades econômicas. Há escolhas realmente interessantes a serem feitas.

O crescimento já não é o foco central. O objetivo é buscar o equilíbrio entre o que é socialmente ótimo e o que é economicamente ótimo.

A nova era também consiste na procura de novas forças produtivas.

Quais são essas forças?

O modelo antigo era o do investimento em construção civil, industrialização, urbanização. Era a obsessão em construir coisas.

O novo mundo não é mais sobre a manufatura. É dominado por setores emergentes, como a inteligência artificial, talvez computação quântica.

Em resumo, as novas forças são áreas estratégicas emergentes nas quais ninguém possui ainda uma vantagem competitiva estabelecida, como carros elétricos, baterias e painéis solares.

A meta de dominar esses setores emergentes é o grande objetivo econômico e tecnológico da China.

Você mencionou a necessidade de haver um equilíbrio social. Isso envolve o incentivo ao consumo interno?

Certamente eles gostariam de dar mais incentivos ao consumo.

O modelo antigo consistia em produzir bens, as forças de produção do lado da oferta. Não era um modelo que favorecia o consumo pessoal, porque era um sistema em que a poupança subsidiava a produção. Não era um modelo focado no indivíduo.

Agora é claro que eles querem mudar isso, e é algo que virá principalmente com a nova geração – porque a nova geração gosta de consumir.

A nova geração tem uma preferência muito diferente de equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Tem um estilo de vida mais consumista, os jovens tomam empréstimos como loucos, muito diferente das gerações anteriores.

Uma poupança elevada não é uma coisa negativa necessariamente, sobretudo nas fases iniciais de desenvolvimento.

Todas as economias asiáticas que tiveram períodos de grande crescimento, como como Japão, Coreia do Sul e Singapura, usaram a estratégia de ter taxa de poupança elevada para não terem de depender do capital estrangeiro, podendo assim construir a sua própria base industrial.

Depois de um certo tempo, para chegar à próxima fase de desenvolvimento, é necessário o impulso do mercado interno.

Na China, isso agora é especialmente crítico, porque à medida que Trump promove guerras tarifárias e vemos uma certa retração na globalização, o mercado interno será a única forma de tornar a economia realmente resiliente – que é, a propósito, a força da economia americana.

Os objetivos da nova China vão acirrar os atritos com os EUA, especialmente agora no Governo Trump?

A minha análise é que, ao contrário do que os EUA imaginavam, as guerras tarifárias serviram de trampolim para que as empresas chinesas se tornassem mais globalizadas e para a própria China acelerar a sua estratégia de diversificação, fazendo um pivô estratégico.

Se olharmos para a participação internacional das exportações chinesas, ela até subiu, enquanto a dos EUA diminuiu.

As empresas chinesas voltaram-se para o Sudeste Asiático, para a América Latina, até mesmo para o Leste Europeu. Abraçaram novas oportunidades e otimizaram seus custos.

No curto prazo, a guerra tarifária foi ruim para a economia chinesa. Mas como sempre, há as consequências não esperadas – e o que não mata fortalece.

Então, será que essa ferramenta realmente é eficaz para os EUA alcançarem os seus objetivos? Não vemos isso nos dados.

Se pensarmos nas novas forças produtivas, como os painéis solares, carros elétricos e baterias, muito pouco disso vai para os EUA.

Portanto, quanto menor a ligação mútua, menos será a influência dos EUA sobre a China.

Dito isso, a economia chinesa passa por uma desaceleração, então desta vez poderá ter um tom mais conciliador. Está menos disposta a envolver-se em conflitos comerciais.

As autoridades chinesas estão dizendo: “mantenham a globalização” e “aumentem a integração global.”

Muitos investidores internacionais decidiram deixar a China por riscos regulatórios e por causa dos conflitos geopolíticos. Foi uma reação precipitada?

Embora a China não seja um mercado fácil de navegar, é bem mais fácil do que muitos países em desenvolvimento – na comparação, por exemplo, com a Índia e talvez até mesmo com o Brasil.

O que falta é mais transparência e estabilidade nas regras. Mas poucos lugares têm isso hoje. Mesmo no Reino Unido, onde vivo, as coisas mudam e há muita incerteza.

Portanto, é um problema universal – e sim, acho que foi uma reação exagerada dos investidores.

A preocupação das pessoas é com a direção política para a economia. Digo que o pragmatismo retornará em algum momento, assim como uma maior ênfase no crescimento. E o que está acontecendo.

A China, ao contrário do que muitos analistas previam, tornou-se uma economia bastante inovadora. Quais as lições do modelo chinês?

Antes de mais nada, precisa haver oportunidades. Você pode ter os melhores talentos, um ótimo sistema educacional e espírito empreendedor, mas se não houver oportunidade, não haverá empreendedorismo.

Se olharmos para a Europa, temos quase todos os fatores, mas as oportunidades são limitadas.

Se existe uma boa ideia e um projeto com potencial para escalar, precisa haver um ecossistema para dar o apoio. No caso chinês, foram os governos locais que ajudaram as empresas privadas a superar muitas barreiras. 

Tem que haver coordenação de diferentes agências, alinhando fornecedores, fabricantes, todo o sistema de  inovação.

E, claro, a mudança mais importante foi que o Governo permitiu que as oportunidades se concretizassem. Empresas como Alibaba e Huawei puderam surgir.

Outro ponto crítico é ter um sistema financeiro amplo e líquido.

E é essencial investir em talentos, nos engenheiros. A abundância de trabalhadores técnicos qualificados alavancou o crescimento da China.

No seu livro, você diz que a China é um país centralizado na política, mas decentralizado na economia. Muito se fala dos subsídios do governo, mas a competição foi essencial para a inovação, certo?

Sim, a economia chinesa tem o ambiente mais competitivo do mundo atualmente. É algo até excessivo, que prejudica a rentabilidade das empresas.

Será que a China realmente precisa de uma centena de fabricantes de veículos elétricos?

Mas a competição tem sido muito importante, porque força as empresas a inovar constantemente, em ciclos muito rápidos.

Ninguém fica confortavelmente sentado na sua cadeira, como os europeus e, você sabe, alguns nos EUA. Na China, as pessoas sabem que, se não buscarem a inovação, estão fora do páreo.

Mesmo se olharmos para a política industrial ou os subsídios, a questão principal é: será que, em última análise, os incentivos vão levar a um aumento da competição? Se for esse o caso, poderá ser uma política bem-sucedida.

Como o Brasil se encaixa nessa nova China?

O Brasil é muito importante porque, como mencionei, a China tem um pivô estratégico de distanciamento dos EUA, abraçando novos parceiros, novos acordos comerciais e novas redes. Existem muitos fatores complementares entre os dois países.

Há muitos bens tecnológicos chineses que são acessíveis e podem ser bons o desenvolvimento tecnológico do Brasil, beneficiando também os consumidores.

A China está buscando reduzir riscos, especialmente em relação aos EUA e à Europa.

Mas, claro, não sou a favor dessas guerras tarifárias. A melhor abordagem deveria ser o pragmatismo.

Ainda há muitas pessoas famintas, ainda há muitas pessoas pobres no mundo. A maior parte dos países não possui um nível de renda elevado para se dar o privilégio de ficar discutindo diferenças ideológicas.

Os países deveriam ser pragmáticos em benefício de seu próprio povo.