Além de relações incestuosas entre fiscais e fiscalizados, a Operação Carne Fraca também expôs situações de descaso criminal com o consumidor.
No frigorífico Larissa, a polícia gravou um funcionário perguntando ao dono da empresa: “Achamos umas paletas … vencidas desde fevereiro. Manda embora ou deixa na produção pra eles usar?” O patrão não titubeia: “Deixa na produção pra eles usar.”
No frigorífico Peccin, a polícia descobriu “a utilização de quantidades de carne muito menor do que a necessária na produção de seus produtos, complementados com outras substâncias, a utilização de carnes estragadas na composição de salsichas e linguiças, a ‘maquiagem’ de carnes estragadas com a substância cancerígena ácido ascórbico, carnes sem rotulagem e sem refrigeração, além da falsificação de notas de compra de carne.”
O script é o mesmo em toda a crise econômica: pequenas e médias empresas, que não tem escala, frequentemente perdem mercado e buscam recuperar sua margem na heterodoxia: seja na sonegação fiscal ou na adulteração do produto.
Essa lógica econômica, no entanto, não faz sentido para empresas líderes de mercado como JBS e BRF, que teriam muito mais a perder com atalhos de qualidade do que seus concorrentes menores e regionais.
Prova disso é que nenhum dos casos sanitários denunciados acima envolve a BRF ou a JBS — até porque, dada a participação de mercado de Sadia, Perdigão e Seara, se as coisas fossem como a internet leva a crer, o país estaria há anos numa grande e constante diarréia.
Mas a Carne Fraca misturou todos no mesmo balaio, e a internet jogou no liquidificador.
Quem leu os jornais ou navegou a internet entre sexta e sábado chegou a uma conclusão apocalíptica: o brasileiro está comendo ‘carne podre’, é frequente ter carne com papelão e produtos químicos proibidos. E mais: isto está acontecendo porque uma grande organização criminosa — de escopo nacional e com tentáculos nas duas maiores empresas do setor — usa parte dos recursos para financiar o PMDB e o PP.
Como os políticos brasileiros nunca mereceram crédito mesmo — e os empresários, mesmo os mais merecedores, nunca tiveram — a tentação de acreditar nesta narrativa é do tamanho de um boi.
Um caso clássico foi a ‘notícia’ de que haveria papelão na carne da BRF, uma convicção formada pela PF a partir do grampo de uma conversa entre dois funcionários da empresa.
Em nota, a BRF explica: “Não há papelão algum nos produtos da BRF. Houve um grande mal entendido na interpretação do áudio capturado pela Polícia Federal. O funcionário estava se referindo às embalagens do produto e não ao seu conteúdo. Quando ele diz “dentro do CMS” [jargão para ‘Carne Mecanicamente Separada’], está se referindo à área onde o CMS é armazenado. Isso fica ainda mais claro quando ele diz que vai ver se consegue “colocar EM papelão”, ou seja, embalar o produto EM papelão, pois esse produto é normalmente embalado em plástico. Na frase seguinte, ele deixa claro que, caso não obtenha a aprovação para a mudança de embalagem, terá de condenar o produto, ou seja, descartá-lo.”
Mas até explicar que focinho de porco não é tomada…
Só na sexta-feira o escândalo queimou, na grelha da infâmia, R$ 5,8 bilhões em valor de mercado da JBS e da BRF. O problema, segundo um gestor, é o risco das denúncias levarem outros países a fechar suas fronteiras para o produto brasileiro, a exemplo do que já aconteceu com a carne bovina em 2009, no último surto brasileiro de febre aftosa.
O escândalo acontece no momento em que a JBS se prepara para listar a JBS Foods International na Bolsa de Nova York; nos últimos anos, e empresa investiu pesado no marketing da qualidade com a campanha “A carne é Friboi?”
Mas o golpe é ainda mais duro para a BRF, que enfrenta um inferno astral raras vezes visto, marcado por resultados em queda, perda de market share, rotatividade intensa de executivos, e ansiedade entre seus acionistas.
A JBS fechou sexta-feira em queda de 10,59%, enquanto a BRF perdeu 7,25%.
Apesar do estardalhaço, a Operação Carne Fraca não é a Lava Jato do setor de proteína animal. Não há indício algum de uma crise sistêmica de qualidade. Dos 5.000 frigoríficos capazes de processar carne sob o selo do SIF, o Serviço de Inspeção Federal, apenas 21 estão sob investigação: 0,42% do total. E os episódios de corrupção, da mesma forma, parecem muito mais casos isolados do que a propina institucionalizada da Odebrecht. Não há aqui uma Sete Brasil, uma Pasadena, um estaleiro Atlântico Sul.
Em contraste com a histeria nas redes sociais, o exercício de sanidade coube ao ator Tony Ramos, que cumpriu o dever de lealdade dos garotos-propaganda e disse ao site Ego:
“Estou surpreso com essa notícia. Eu sou apenas contratado pela empresa de publicidade, não tenho nenhum contato com JBS. Não sou técnico no assunto sobre o qual a Polícia Federal está fazendo a ação, mas existe um controle em todas as embalagens, existe um código de barras pelo qual as pessoas podem acompanhar a qualidade e a validade. Eu já visitei uma das fábricas, continuo comprando os produtos Friboi. Tenho carnes deles agora no meu freezer e uso nos meus churrascos do fim de semana. Eu espero que se apure a verdade, eles têm o direito das minhas imagens. Não sei se faria novamente (as propagandas). Se eles forem inocentados dos erros que estão sendo acusados, eu faria. Eu vou checar essa informação imediatamente”.
Tony Ramos está certo: a carne de alguns é fraca, mas a carne do Brasil não está toda podre.