As mudanças no setor elétrico anunciadas hoje estão sendo amplamente chamadas de “reforma” — mas talvez o mais correto seja chamá-las pelo que efetivamente são: o mais novo programa social do Governo Lula.
As mudanças foram propostas por meio de uma medida provisória enviada hoje ao Congresso. Os deputados e senadores terão 120 dias para aprovar a MP antes que ela caduque.
A MP foi dividida pelo Governo em três grandes eixos: ‘justiça tarifária’; ‘liberdade para o consumidor’; e ‘equilíbrio para o setor’.
A principal proposta do primeiro eixo é dar gratuidade da conta de luz para 60 milhões de pessoas que consomem até 80 kw/h por mês, além de isentar de pagar a CDE quem consome até 120 kw/h e ganha de meio a um salário mínimo, o que vai gerar um desconto de 12% na conta.
O Governo estima que essa isenção e desconto vá custar R$ 3,5 bilhões — mas a conta de especialistas aponta para um valor muito maior, de R$ 7 bilhões a R$ 10 bilhões.
Como não existe almoço grátis, a conta vai ficar com a classe média e os consumidores industriais e comerciais, que verão um aumento em sua conta de luz.
Isso vai acontecer porque o Governo está propondo que a gratuidade seja bancada por meio de um aumento da CDE, a conta de desenvolvimento energético que é cobrada na tarifa dos consumidores e hoje já representa de 13% a 15% do valor total.
“Quando o Governo aumenta a CDE e ainda tira consumidores que hoje contribuem com a conta, quem sobra pagando naturalmente vai ter que pagar mais,” disse um executivo do setor.
Para compensar esse aumento, o Governo está propondo que o consumidor do mercado livre (hoje, basicamente as empresas, grandes e pequenas) contribua mais com a CDE. Hoje, esse perfil de consumidor contribui com R$ 4 bilhões de uma conta total de R$ 48 bilhões por ano. A proposta do Governo é que ele passe a contribuir com metade do montante, um aumento de 6x.
O impacto disso, segundo um cálculo do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), será um aumento de 25% na conta de luz dos consumidores do mercado livre. “E esse é o cara que gera emprego e renda para o País, e que mais uma vez vai ser onerado,” disse esta fonte.
As empresas terão um impacto ainda maior porque a MP acaba com a chamada energia incentivada, que permite que as companhias comprem energia solar e eólica subsidiada.
“Se juntar esse aumento mais o que eles vão ter que pagar para a CDE, a tarifa vai subir uns 40% para esses clientes,” disse Adriano Pires, o fundador do CBIE. “Isso vai ter um impacto inflacionário enorme.”
Outra mudança que o Governo está propondo, e que em tese compensaria os aumentos que a classe média terá, é a abertura do mercado livre para os consumidores de baixa tensão (incluindo os residenciais).
Isso vai permitir que os consumidores comprem sua energia do fornecedor que acharem melhor, o que em tese poderia estimular a concorrência no setor, e gerar uma redução nos preços.
O problema é que a realidade não é tão simples quanto a teoria.
A experiência internacional mostra que a abertura do mercado livre para consumidores residenciais não leva a uma migração grande dos consumidores do mercado cativo para o livre, dizem fontes do setor.
No Reino Unido, por exemplo, que fez a abertura há 20 anos, apenas 18% dos consumidores trocaram de fornecedor de energia, e muitas vezes num horizonte de curto prazo apenas para aproveitar descontos sazonais.
Além disso, mais de 50% dos consumidores decidiram permanecer no mercado cativo e, por conta de subsídios cruzados entre consumidores cativos (de menor poder aquisitivo) e consumidores que migraram ao varejo (de maior poder aquisitivo) houve uma grande concentração de custos sociais e ambientais recaindo sobre o primeiro grupo de clientes.
“E mesmo que seja um sucesso, e haja um grande número de migrações, a abertura do mercado livre só vai valer a partir de janeiro de 2028. Até lá, esse consumidor vai pagar mais caro,” disse o executivo.
Outra fonte do setor nota que, na prática, a MP está criando um imposto escondido para parte da população para conseguir bancar um programa social.
“É uma reforma extremamente tímida, de caráter populista/eleitoreiro e com visão de curto prazo,” disse um executivo. “Ela não endereça estruturalmente a modernização que o setor precisa. Na prática, estão fazendo um programa social usando a energia, e colocando alguns penduricalhos para chamar de reforma.”
Se o Governo quer fazer um programa social, “ele deveria colocar o custo desse programa no orçamento da União, e não na CDE. Seria mais transparente e mais justo.”