Perdemos nosso Grande Mestre, perdemos o Sr. Erling S. Lorentzen, um homem à frente de seu tempo!

Perdemos um herói de guerra. Um plebeu que com seu carisma entrou para a Família Real da Noruega pelo seu próprio valor. Um homem à frente de seu tempo.

Pensava grande, agia grande e não precisava de outdoors ou banners com os valores da empresa que tanto amava. Ele os tinha dentro de si e nos mostrava através de exemplos e ações próprias.

E este homem veio para o Brasil seguindo os passos de seus pais e seus avós, que foram donos de navios e passaram coincidentemente pelo Porto de Camocim, no Ceará, de onde os navios iam e vinham para o Norte do Brasil.

Quis o destino que nos encontrássemos na Aracruz Celulose, quando eu o presenteei com um livro que abordava a presença e empreendedorismo de seus avós, em Camocim (CE), cidade onde passei minha infância, 

Instigado por outra excepcional personalidade, Dr. Eliezer Batista, para exportar cavacos de madeira junto com o minério de ferro produzido pela Companhia Vale do Rio Doce, logo viu que a dobradinha proposta não daria certo e, assim, usou seu poder de convencimento junto ao Sr. Eliezer e também ao capixaba Marcos Vianna, presidente do BNDES na época, para implantar uma fábrica de celulose a partir da fibra de eucalipto para exportação.

Com a ideia em mente, pensou logo numa indústria com maior escala possível, de 400 mil toneladas/ano. Para tanto, contratou a Jaakko Pöyry, da Finlândia, uma das melhores empresas de engenharia do mundo, para fazer o projeto da fábrica de celulose. 

Baseado na experiência nórdica no setor de papel e celulose, trouxe uma empresa sueca com mais de mil anos de experiência, a Billerud, hoje StoraEnso, para aportar suas melhores tecnologias e ajudar a nos colocar no mercado sofisticado da celulose. A Billerud tinha uma fábrica em Portugal que usava uma espécie de eucalipto para consumo interno.

Na época, o Brasil não tinha uma legislação ambiental direcionada ao setor e ele exigiu que fossem buscadas as melhores legislações da Finlândia, Suécia, Canadá e Estados Unidos, pois queria iniciar a nova fábrica seguindo os melhores padrões ambientais, ainda que não fossem exigidos por aqui. 

Não quis tirar proveito daquela situação, para reduzir investimentos, dando um forte sinal à sua Organização de que queria as coisas bem feitas.

No início dos plantios de eucaliptos na região de Aracruz, a floresta foi vítima de uma praga que dizimou boa parte da produção futura. 

O diretor florestal da época, o incansável Leopoldo Brandão, sugeriu então que fosse criado um Centro de Pesquisas, e o nosso homem de visão de futuro logo aprovou a ideia junto ao conselho de administração. 

Aprovou também a contratação de engenheiros brasileiros recém formados para estudarem no exterior com vistas a concluir seus doutorados na área de celulose e papel, para depois regressarem ao Brasil e aprofundarem os conhecimentos sobre a fibra de eucalipto, transformando-a de uma fibra de enchimento e pouco valorizada na fibra queridinha do mercado atual e desejada em todo o mundo.

Ele sabia que o eucalipto só era bem conhecido na Austrália e precisava ser mais estudado aqui no Brasil tanto para seu manejo, como para a produção de celulose.

Nessa linha de estratégia, pesquisa e inovação passaram a fazer parte de nosso dia a dia, comandados pelo Dr. Edgar Campinhos, na área florestal, e pelo Dr. Ergilio Cláudio da Silva, na área industrial e o diretor comercial e sueco, Claes Hall. Foram incansáveis, participando de centenas de reuniões com papeleiros americanos e europeus, mostrando as vantagens do uso de nossa celulose em suas máquinas de papel.

Sua visão do bem comum ficou muito clara quando a Jari Celulose se deu mal com o plantio da Melina, originária da Indonésia, tendo que mudar para o eucalipto.

Naquela época, a Aracruz já tinha feito vários avanços tecnológicos sobre o eucalipto e o Sr. Lorentzen autorizou que enviássemos nossas sementes para a outra empresa, totalmente sem custos, nos convencendo de que precisávamos de uma concorrência de qualidade, pois os clientes com certeza não gostariam de ficar nas mãos de um único fornecedor de uma celulose ainda desconhecida no mercado. 

Com certeza, uma visão estratégica de gigante, muito diferente da visão de um novato como eu, que a achava meio ingênua. Com o passar dos anos, a importância e o alcance daquele direcionamento ficaram claros. 

Eu mesmo autorizei mais tarde a venda de várias sementes e até clones para alguns de nossos concorrentes da época, seguindo o exemplo do mestre. 

E graças a este espírito, divulgamos tudo que aprendemos sobre clonagem, ajudando por exemplo o setor cafeeiro a tomar conta também dessa tecnologia nova e importante.

Acho que vimos nesse período, uma mudança radical, transferindo do rico hemisfério Norte para o Hemisfério Sul, uma Indústria que se mostrou competente, resiliente, competitiva, sem subsídios dos Governos, numa verdadeira disrupção do setor no mundo, dito na linguagem da moda e de hoje.

Tive a sorte de aprender e conviver de perto com este homem, exemplo para muito do que fiz e aprendi na vida.

Senti muito sua morte e a forma como ocorreu, pois já tinha me acostumado e me preparado para festejar seu centenário.

Participamos, eu e Helane, de seu aniversário de 80 anos lá na Noruega, onde vi e ouvi seus companheiros de guerra, empreendedores, príncipes e princesas num baile inesquecível.

Sr. Lorentzen era incansável e sua cabeça girava sempre para empreender novos projetos. Quando ele me pediu para ir a Gana visitar seu mais novo empreendimento, há uns sete anos, tentei convencê-lo de que se o eucalipto levasse uns dez anos para crescer naquele País, ele pouco veria dos resultados. 

Com seu sorriso maroto, ele me disse: ”Vá e se preocupe apenas em me dizer o que viu e o que precisa melhorar.  Não se preocupe se vou ver ou não os resultados ou está achando que vou morrer logo? Espero passar dos 100 anos e ver muitos empregos naquele país. Quero demonstrar ao Governo de Gana que precisam de investimentos e não de bolsas ou presentes das Nações Unidas.”

Fui a Gana e vi como ele tratava e se preocupava com aquele país, tendo usado lá os mesmos padrões que tínhamos na Aracruz, embora lá as condições fossem bem mais precárias. Ele dizia que os trabalhadores de lá precisavam receber boas instalações e que, com certeza, cuidariam bem delas. E era verdade!

Ele valorizava as relações humanas como poucos. Tratava o Príncipe Charles com o mesmo respeito e simplicidade que tratava o Cacique da Aldeia de Comboios, Senhor Antônio. 

Era admirável sua satisfação em conversar com seu Antônio lá dentro da aldeia. Sabia da liturgia do cargo de cada um e fazia questão de aplicar tal conhecimento na prática.

Durante os quarenta anos de convivência com Sr.Lorentzen, eu o vi, por vários anos, passar o Réveillon na Casa de Hóspedes da Aracruz, pois ele gostava de todo dia 31 de dezembro dar uma volta na fábrica, cumprimentar os operadores nas salas de controle, ir ao Portocel. 

Ele e sua esposa ficavam felizes em passarem as festas de fim de ano na Casa de Hóspedes da Aracruz, onde por algumas vezes fomos convidados a dividir com o casal tão preciosos momentos.

Ele sempre me dizia que não acreditava em sorte, mas no trabalho e na inteligência e, por isso, fazia questão de vir à fábrica no final do ano e ficar próximo daqueles que proporcionavam a maior satisfação de sua vida: gerar valor e empregos de qualidade, e justo no Brasil, País que ele escolheu para viver e criar seus filhos.

Era um homem do mundo, participava anualmente de reuniões estratégicas com o grande estrategista húngaro-americano, Henry Kissinger, e depois dividia conosco os principais achados, para que incluíssemos em nossos pensamentos estratégicos.Foi nosso grande Mestre, sem dúvida alguma.

Trouxe em visita à cidade de Aracruz reis e rainhas, entre eles o Príncipe Charles; o Rei Carl Gustaf e a Rainha Silvia, da Suécia; o Príncipe da Tailândia; presidentes de países como Congo, Suíça e Paraguai; o Ministro da Agricultura da China, que almejava iniciar plantios de eucaliptos no sul daquele país, além de centenas de personalidades de expressão do mundo empresarial. Inquestionável também seu vigor e satisfação em acompanhar muitos desses visitantes, subindo a caldeira para ter uma visão mais ampla do parque industrial e das florestas.

Era um verdadeiro embaixador da Aracruz e do País. Fazia questão de falar bem do Brasil, elogiar seus trabalhadores, servindo vinhos brasileiros, nem sempre os melhores.

Recebemos em nossa Casa de Hóspedes empresários do mundo da celulose e do mundo da sustentabilidade, pois ele foi um dos primeiros a navegar pelo que hoje se chama de ESG. E não era apenas marketing, pois ele não gostava de nada que não correspondesse às ações reais da empresa. Não queria parecer bonito, se não praticássemos atos correspondentes.

Me pediu, lá pelos idos de 1990, para contratar um diretor para uma nova área de sustentabilidade, e tivemos a sorte de trazer o Carlos Roxo, que estruturou tudo e nos ajudou a implantar uma nova mentalidade e depois resultou em fazer parte do Índice Dow Jones de Sustentabilidade, participar do World Business Council, do CEBDS e do Comitê contra a Corrupção da ONU.

Tive a chance de participar de todos estes fóruns e muito aprendi sobre essa nova visão de mundo.

Nessa fase, ele propôs a um grupo de acionistas do setor no mundo que precisávamos fazer um estudo sobre o impacto de toda a cadeia da celulose e do papel no meio ambiente.

Tratava-se de um estudo feito por cientistas de vários países, a um custo elevado, onde só a Aracruz precisava colocar quase US$ 1,3 milhão. 

Ele levou a proposta ao conselho de administração e um dos acionistas perguntou o que aconteceria se os resultados fossem negativos para o setor. 

Ele respondeu que queria saber somente a verdade e que, caso os resultados fossem negativos, ou ele sairia do setor ou tentaria corrigir o que estivesse errado. Todos entenderam e votaram a favor. 

O estudo, chamado de Sustainable Paper Cycle, mostrou que o setor tem um impacto positivo para o meio ambiente e a sociedade, muito maior que os impactos a serem corrigidos e, claro, que tem melhorado cada vez mais ao longo do tempo. O estudo foi um balizador para as melhorias.

Era um homem em busca da verdade através da ciência e não usando a ciência para justificar possíveis erros, e sempre um grande ouvinte, com respeito total a quem lhe trazia os mais variados assuntos.

Em uma oportunidade, ele pediu a opinião do Carlos Roxo sobre determinado assunto em que o Roxo discordava dele. Roxo. com todo o respeito, falou: Sr Lorentzen, desculpe, mas minha opinião difere da expressada pelo senhor.”

Ele respondeu de pronto: “A Aracruz não lhe paga para dizer o que eu penso, mas o que você pensa, logo este pedido de desculpas não faz sentido.” 

Um posicionamento de um líder, e não de um chefe.

Certa vez, numa reunião do conselho, levei para aprovação as mudanças salariais que queríamos introduzir e que implicavam em se premiar o management sempre que a empresa se saísse bem. 

Sempre há os que olham isto como aumento de custos e ele logo direcionou o assunto dizendo: ”Esta empresa não quer ficar rica às custas dos salários de seus trabalhadores e de seu management. Quero que ela siga, muito de perto, o que há de melhor no Brasil e seja líder no Espírito Santo.”

Ele não fugia dos momentos ou decisões difíceis que vivemos em qualquer empresa.

Em meados de 1993, com as mudanças do Plano Real, o preço da celulose caindo para US$ 300 a tonelada, o câmbio próximo de 1 dólar igual a 1 real, uma dívida de quase US$ 900 milhões, o conselho decidiu retirar o presidente da época. Me chamaram para assumir interinamente e com uma missão duríssima, de reduzir custos, cortar gastos, buscar aumentar os preços, melhorar a dívida, etc.  A missão era salvar a empresa. Tínhamos uma diretoria de muita competência e dedicação, inúmeros gerentes de alto nível, e fomos à luta.

Ao final de cada semana ele me ligava para saber das dificuldades e me dava força para continuar naquela direção. 

Estava exaurido, tendo feito demissões que doíam na alma, reduzido custos, terceirizado muitas atividades, tudo sob a pressão dos sindicatos e do prefeito da cidade, também muito afetada pelas reduções, já que afetava a cadeia produtiva que servia à empresa. 

Ele tomava conhecimento de tudo isto. Era cobrado por diferentes acionistas, com diferentes tipos de abordagens. 

Então falei claramente para ele que eu não estava mais suportando aquela somatória de pressões, e achava que tinha encerrado meu ciclo com aquela última e dura tarefa. 

Missão cumprida, ele me pediu para ir ao Rio imediatamente e, quando lá cheguei, ele me deu a notícia de que havia reunido o conselho e eu estava promovido a vice-presidente, incluindo as áreas florestal e industrial sob minha responsabilidade.  

Era um reconhecimento ao trabalho duro, difícil, mas necessário ao futuro crescimento da empresa. Era rápido e intuitivo nas decisões mais críticas.

E, mais à frente, quando estive muito perto de deixar a empresa, ele novamente foi rápido e certeiro, não me deixando sair da Aracruz e me promovendo à Presidente com a aprovação dos outrosConselheiros e Acionistas. 

De novo ele tomava as decisões com base em sua experiência praticamente diária que tinha dentro da Aracruz, vendo todos os seus movimentos de perto e podendo ser justo nas decisões ou escolhas.

Um homem avesso às mordomias do poder ou da riqueza. Deixou o que tinha de melhor no reinado da Noruega e veio para o Brasil para empreender e gerar riquezas num país tão necessitado. 

Não aceitava que ofertássemos helicópteros para ir à sua querida Pedra Azul. Dizia que a viagem era curta e podia ir de carro, além de apreciar a natureza da região.

Evitava oferta de transporte no aeroporto Santos Dumont, do terminal ao avião, mesmo estando com a Princesa. Nos dizia que podia ir com as próprias pernas e ela precisava fazer o mesmo. Eu o vi rejeitar, por várias vezes, os carros elétricos no aeroporto de Zurich, que é longo e movimentado, mas ele dizia que não era velho e poderia chegar lá com tranquilidade. Tinha uma resiliência fora do comum.

Morou no Rio, no mesmo apartamento por todos esses anos, e dirigia um Mercedes vermelho antigo, que nunca quis renovar. Era despojado de afetações e demonstrações de riqueza.

Em sua casa, em Pedra Azul, construía muitos dos móveis que tinha em seu apartamento no Rio e nos mostrava com muito orgulho.

Mesmo nessa simplicidade, o Sr. Lorentzen sabia da liturgia do cargo, fazia questão de respeitá-la e, mesmo dentro das formalidades, nos deixava completamente à vontade em seus jantares de confraternização após grandes vitórias da Aracruz.

Sempre fez questão de termos cerimonias de inauguração que promovesse a cidade de Aracruz e o nome da empresa para o mundo. 

Todas as inaugurações das fábricas A, B e C, contaram com a presença dos Presidentes da República da época, e num padrão condizente com o tamanho dos empreendimentos. 

Este espírito de internacionalização da empresa nos orientava para que viajássemos para conhecer melhor nossos concorrentes, pedíssemos segundas opiniões para grandes projetos ou grandes decisões, e abria nossos olhos para o que acontecia no exterior, principalmente na Escandinávia, onde ele tinha grande penetração.

Graças a esse conhecimento internacional diverso, trouxemos muitas ideias novas e avançadas e as aplicamos na Aracruz, e que depois eram espalhadas pelo Brasil.

E ele nos incentivava a deixar fluir tais ideias para os concorrentes. Dizia que essa era uma contribuição intelectual que os líderes devem passar à frente. Enem por isso a Aracruz deixou de crescer a 10% ao ano, ter os melhores custos de produção do setor e ser a empresa mais desejada para fusões e aquisições.

Em resumo, ele nos ensinou a praticar um capitalismo não abusivo, a confiar nas pessoas e nas equipes, a tratar bem clientes, fornecedores e competidores dignos, enfim ter e manter um padrão ético admirável. 

Foi um ícone da Sustentabilidade no Brasil e no mundo da celulose, além de uma simplicidade muito grande para quem conviveu de perto com ele. 

Quando fui promovido à Presidente da Aracruz, ele me disse: “Carlos, não vou medir sua performance apenas pelos resultados trimestrais financeiros, pois penso mais no crescimento da Empresa, na geração de bons empregos e no impacto que ela possa promover no desenvolvimento econômico e social do Espírito Santo e do Brasil.

Deixou um legado de vida, de visão do mundo e de empreendedorismo deste novo século.

Não era obcecado pela vitória, mas pela jornada.

 

Carlos Aguiar foi presidente da Aracruz Celulose.