Muitos lugares no mundo estão associados a grandes nomes: Brasília a Oscar Niemeyer, o Aterro do Flamengo a Burle Marx, Florença a Leonardo da Vinci.

A Barra da Tijuca é Carlos Fernando de Carvalho.

Antes um destino apenas para lazer, ir à praia, fazer esportes ou namorar, a Barra se tornou a partir dos anos 70 o bairro residencial e comercial com a melhor qualidade de vida do Rio – o primeiro no ranking da Prefeitura – e o de menor densidade urbana da cidade.

Além da qualidade de vida, a região foi responsável por descondensar a Zona Sul e aliviar a pressão imobiliária da época.

Onde estariam os atuais 500.000 moradores da região da Barra e Recreio, uma população formada há apenas 50 anos? Como estaria o adensamento em Ipanema, Leblon? Como atender a demanda natural das classes média e alta, potenciais compradores de regiões de praias e na Zona Sul? A tendência inevitável seria o modelo de Copacabanização, com densidade máxima.

Alguns empresários do setor imobiliário foram precursores da implantação desta nova região – mas Carlos Fernando de Carvalho, que nos deixou na semana passada aos 100 anos, foi o maior responsável pela transformação do bairro na potência que é hoje.

Dr. Carlos não olhava o imediato; seu horizonte era ilimitado. Tinha uma visão de futuro como ninguém. Intuitivo, incansável e determinado, enxergava o imprevisível.

Carvalho começou sua vida profissional na antiga Rede Ferroviária Federal incentivado pelo pai, que também trabalhava lá. Fazia desenhos técnicos de galpões para máquinas e trens. Para economizar o tempo e o dinheiro escasso, quando visitava as obras ia pé pela linha do trem, pisando nos dormentes.  Anos depois, aquele estudante trabalhador, futuro engenheiro, se transformaria numa locomotiva.

Empreendedor desde sempre, fundou sua construtora, a Carvalho Hosken. (Como Hosken tinha menos apetite para o risco, a sociedade durou poucos anos, mas o nome ficou.)

Carvalho chegou em Brasília na época efervescente de sua transformação em capital. Foi crescendo e construindo apartamentos que lhe deram energia para novas empreitadas. Em dado momento, Carvalho se concentrou no Rio de Janeiro, atuando em obras públicas e lançando-se como incorporador.

Após um grande empreendimento no Centro da Cidade – a torre empresarial Charles de Gaulle, ao lado do Santos Dumont – sua estação seguinte seria no Alto Leblon, com o condomínio Quintas e Quintais.

Começou a comprar as primeiras glebas na Barra da Tijuca por acreditar que poderia transformar a região no melhor bairro do Rio – e foi produzindo uma sequência de grandes realizações.

O condomínio Atlântico Sul, na praia da Barra, revolucionou com um estilo arquitetônico diferenciado pelo movimento das varandas. Fez também o Itanhangá Hills, em frente ao campo de golfe e com vista para o mar, e o Village São Conrado, outro empreendimento bem-sucedido de grande escala.

Estes produtos tinham em comum a qualidade representada pela essência conceitual criada por Carvalho: jardins maravilhosos, esculturas, portarias elegantes, projetos selecionados, fachadas elaboradas, produtos confortáveis, clubes ao pé dos prédios, lazer e estrutura organizada nos condomínios para manter a qualidade de vida dos moradores e garantir a boa imagem dos empreendimentos.

Com boa parte das terras da Barra já nas mãos de empresários como Tjong Hiong Oei (“o Chinês da Barra”), Pasquale Mauro e Múcio Atayde, Carvalho comprou o que conseguiu com financiamento bancário: quilômetros de praia na Avenida Sernambetiba, glebas na Avenida das Américas, na Ayrton Senna, e na então distante Abelardo Bueno, onde nasceram os condomínios Rio 2 e Cidade Jardim.

Carvalho contratou o arquiteto Sérgio Bernardes para construir ruas e canais na Pedra da Panela, sonhando com uma Veneza carioca. Emprestou as terras da Ilha Pura para o Rock in Rio, para tornar o local conhecido. Construiu e doou centenas de casas populares em terreno próprio em Curicica. Urbanizou a Avenida Abelardo Bueno com paisagismo de flores, buganvílias coloridas, palmeiras imperiais para sua valorização.

Quando a rede Hilton definiu que implantaria um hotel 4 estrelas no Centro Metropolitano (uma sub-região da Barra), Carvalho bateu o pé: “Só se for 5 estrelas!” Garantia assim o padrão de seus milhões de metros quadrados no entorno.

O Península – um condomínio de alto padrão com 57 prédios e 28 mil moradores na Barra, quase do tamanho do Leblon – é o maior exemplo de produto de qualidade com a sua assinatura. Implantou um bosque de restinga e manguezal na sua orla, plantou jardins lindíssimos, doou centenas de esculturas em mármore e selecionou projetos e padrões prediais.  Não economizou, só focou na excelência do projeto.

Para o apartamento decorado do Fontvieille (um dos prédios do condomínio), Carvalho trouxe um Picasso, sofás de Zaha Hadid, lustres de murano, baixela de prata de Dom Pedro II e porcelanas chinesas – tudo de sua coleção pessoal.

Quando o Rio se candidatou como Cidade Olímpica, a cidade precisava de Carvalho para a implantação da Vila dos Atletas. Fui incumbido de convidá-lo para o desafio. Depois de pensar – nunca tomava decisões precipitadas – chamou seus filhos e anunciou que toparia o projeto. “A Barra da Tijuca será outra com as Olímpiadas no Rio”.

Construiu a melhor Vila da história das Olimpíadas. Infelizmente, a crise econômica que veio em seguida paralisou o mercado, impedindo as vendas e lhe causando enorme prejuízo. Se tivesse optado por produtos populares e de baixa qualidade, teria vendido todos os 3.600 apartamentos. Mas não seria o Carvalho que conheci.

Deixou para o futuro os projetos licenciados para o Morro do Outeiro, Pedra da Panela, Gleba F, Centro Metropolitano e a continuidade da Ilha Pura, totalizando mais de 5 milhões de m2 de terra, 4 milhões de área privativa a produzir, R$ 40 bilhões de VGV.

Neste último ano, acompanhou a definição da venda da Ilha Pura para o BTG Pactual, o sucesso da arbitragem contra a Cyrela e a solução da dívida com a CEF no Parque Olímpico. Ficou em paz.

Tive o privilégio de trabalhar com o Dr. Carlos por mais de 40 anos. Aprendi com ele, uma escola de vida. Almoçamos pouco antes de seu aniversário de 100 anos. “Precisamos pensar no projeto da Praia da Sernambetiba…”

Foi a última encomenda de um homem invencível, que vou ficar devendo.

Sergio Moreira Dias é engenheiro civil, projetista e urbanista.