“J’ai reinventé le passé pour voir la beauté de l’avenir” – ou seja, “Reinventei o passado para ver a beleza do futuro.”
 
Embora se refira a outro contexto, a frase do escritor francês Louis Aragon (1897-1982) teima em vir à mente quando se tenta resumir o extraordinário trabalho realizado pelo arquiteto e urbanista curitibano Jaime Lerner, que morreu na quinta-feira, aos 83 anos, em decorrência de complicações renais.

Não é difícil entender o porquê. Lerner foi, sem dúvida, um inovador, porém de uma extração distinta da que marcou muitos de seus pares. A “inovação” norteou de maneira radical os seus projetos, mas não no sentido clichê do termo e sim em sua acepção primeira: apoiava-se nas raízes. Lerner queria que as cidades reencontrassem a sua essência.  “As melhores cidades de hoje não são muito diferentes das cidades de 300 anos atrás”, dizia ele. 

11495 048880b2 a9ed 7f74 417a ab034e3288eaA que aspectos estaria se referindo? O ex-prefeito de Curitiba (em três oportunidades) e ex-governador do Paraná (por duas vezes) entendia a cidade como o lugar do encontro, da diversidade, da mescla de pessoas. Essa era a sua natureza. Como se sabe, entretanto, um sem-número de arquitetos e urbanistas projetaram edifícios e metrópoles como meros elogios da forma e da tecnologia, deixando os habitantes em segundo plano. Nada menos Jaime Lerner do que isso.

Seu ponto de vista era afinado com o do economista norte-americano Edward Glaeser, autor do clássico “O triunfo da cidade”, para quem não só “devemos nos libertar de identificar as cidades como edificações e lembrar que a cidade real é constituída de gente e não de concreto”, como também precisamos considerar que elas, as cidades, “têm sido os maiores motores da inovação desde a época em que Platão e Sócrates discutiam em um mercado ateniense.”
 
O que Lerner fazia era inovar com base na matriz que, já no longínquo passado grego, foi a razão de ser das cidades: o espaço da convivência humana. Toda vez que elas não privilegiam isso se afastam de seu propósito. Tornam-se antifuncionais; o antônimo da inovação. Inovar em cidades significa, portanto, como sempre atentou o arquiteto e urbanista curitibano, recuperar – reinventar – suas raízes.
 
Essa tarefa, ressalte-se, não é trivial; não o foi para Lerner. “Inovação” guarda dentro de si, literalmente, o termo “ação”. E Jaime Lerner consagrou-se, sobretudo, por ser um homem de ação. 
 
Seria talvez redundante elencar aqui suas realizações, afinal, algumas delas todo o planeta conhece – como a invenção do BRT, o sistema de transporte com ônibus articulados e estações de integração, hoje presente em quase 200 cidades do mundo. Deve-se, todavia, sublinhar o caráter visionário desses projetos que tornaram Lerner uma celebridade em sua área.

Em 1965, ele participou da criação do respeitadíssimo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), que formaria quadros importantes para o Brasil.
 
Data de 1974 a pioneira linha de ônibus expresso em corredores da capital paranaense. Dois anos antes, o então prefeito inaugurara a primeira rua exclusiva para pedestres do país.
 
Em 1990, época em que temas como ecologia e meio ambiente estavam longe de representar moeda corrente, Lerner criou o programa Compra do Lixo, que incentivava moradores da periferia da capital paranaense a separarem material para reciclagem em troca de vale-transporte. O projeto rendeu ao arquiteto e urbanista o prêmio máximo da ONU para o Meio Ambiente.
 
Com tantas contribuições, em 2017 a revista Planetizen, dos Estados Unidos, colocou Lerner como o segundo urbanista de maior influência do globo – o primeiro lugar coube à norte-americana Jane Jacobs (1916-2006) –, à frente de gigantes como Le Corbusier (1887-1965).
 
“Jaime Lerner queria pegar o tecido esgarçado das cidades para cerzi-lo de novo em torno de um projeto de inclusão e pluralidade”, sintetiza o jornalista Valério Fabris, que se aproximou do arquiteto como profissional da imprensa ainda na década de 1970 e acabou se tornando seu amigo.
 
“Quem cria, nasce todo dia” é o título de um livro de Lerner. Não seria exagero completar: “e não morre nunca.” 

Este é o consolo, o alento que fica quando se perde alguém como Jaime Lerner em um momento de tanto desamparo no Brasil. Seu legado nos ensina a pensar que pode, sim, haver beleza no futuro.

 

Rinaldo Gama é jornalista, editor e coordenador de conteúdo da Arq. Futuro, a plataforma multimídia voltada para a discussão sobre cidades.

Tomas Alvim é cofundador da Arq.Futuro e coordenador do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.

Marisa Moreira Salles é cofundadora da Arq.Futuro, membro do conselho da Fundação Bienal de São Paulo e do Conselho Consultivo da Reitoria do MIT School of Architecture and Planning.

Os autores agradecem à colaboração do jornalista Valério Fabris.