A estratégia do Governo de arrecadar mais “por meio de mudança de regrinhas e contenciosos tributários” é muito ruim para o ambiente de negócios do País, diz o economista Marcos Lisboa. “Gera uma incerteza que contamina o investimento.”
Em uma longa conversa com o Brazil Journal sobre a conjuntura brasileira, Lisboa detalhou as fragilidades do arcabouço fiscal diante da rigidez das despesas obrigatórias e das indexações dos gastos com saúde e educação.
“Paradoxalmente, quanto maior a receita, mais inconsistente será o arcabouço,” disse Lisboa. “Então, do ponto de vista macro, como é que alguém investe? Será que os gastos do Governo vão continuar crescendo? Será com aumento de receita? Vai ter inflação? Isso prejudica o ambiente de negócios, prejudica o investimento, prejudica o crescimento econômico.”
Para Lisboa, essa inconsistência fiscal se soma a um ambiente regulatório adverso, de governança frágil, com hiperjudicialização. “Estamos falando de áreas de investimento de muito longo prazo,” afirmou. “Tudo isso inibe o investimento.”
Falando da Reforma Tributária, Lisboa considera que ela “deveria ser simples,” mas “muita coisa ali está me preocupando.”
“Para mim, o mais chocante desse processo é a facilidade de captura do Estado por grupos de interesse,” disse o economista na entrevista abaixo.
A arrecadação de impostos tem subido bastante, uma alta real de 8% neste ano. Mesmo assim, o superávit primário ainda parece distante. Por que a conta não fecha?
O primeiro ponto é que essa agenda de arrecadação é a velha agenda da Receita, de mais de 30 anos. Isso não é novo. São temas muito antigos.
É uma maneira de tentar fazer ajuste no Brasil, mudando um pouco as regras, ou a interpretação de regras, para arrecadar mais. Várias dessas ideias já estavam circulando por aí desde o Governo anterior.
Essa é a primeira parte da história. A segunda parte é que o Brasil tem uma peculiaridade em relação a outros países que é a rigidez das despesas. Isso dificulta fazer ajustes fiscais por meio do corte de gastos.
Não tem como, porque as despesas são essencialmente salários e transferências obrigatórias. Algumas são cláusulas pétreas da Constituição. Não tem o que fazer. Sobra uma parcela muito pequena para reduzir. Não há flexibilidade.
E o Governo tomou a decisão de dar aumentos reais para o salário mínimo, o que vai elevar ainda mais os gastos obrigatórios.
Sim. O que pode ser feito então é controlar a velocidade de crescimento do gasto. Não dá para ir além disso.
Houve a tentativa de restringir o aumento com o Teto de Gastos. Se o Governo quisesse aumentar o programa A, teria que reduzir o programa B. O limite funcionou bem por alguns anos, ajudou o Brasil a sair da recessão, ajudou a derrubar a taxa de juros, com inflação cadente.
O Teto permitia criar despesas extraordinárias no caso de calamidades, como foi na pandemia. Mas vieram maneiras criativas de tirar gastos do Teto.
A boa notícia do ano passado, com o novo Governo, foi ver que muitos que demonizavam o Teto acabaram reconhecendo a necessidade de ter algum controle. A economia reagiu muito favoravelmente a essa mudança do discurso.
O problema é, com o fim da Lei do Teto, voltaram as indexações de várias despesas à receita – e isso gera uma inconsistência no arcabouço fiscal. Porque, se a receita cresce, várias despesas precisam crescer obrigatoriamente, como na saúde e na educação.
Além do mais, teve essa decisão de dar aumentos reais para o salário mínimo, com impacto na Previdência e em algumas transferências.
O resultado de tudo isso é uma inconsistência, porque, paradoxalmente, quanto maior a receita, mais inconsistente será o arcabouço.
As demais despesas ficam espremidas. As discricionárias vão para zero.
Mas as inconsistências não param por aí.
Tem mais o quê?
Essa agenda da Receita Federal para arrecadar mais, de mudança de regrinhas e contencioso tributário, é muito ruim para o ambiente de negócios do Brasil. Gera uma incerteza que contamina o investimento.
Não existe um contencioso tributário como o brasileiro. Somando o administrativo e o judicial, chega a 75% do PIB. Nos países da OCDE, ela é de 0,3% do PIB. Para chegar a 75% é porque existe algo muito errado no Brasil.
Tem uma disfuncionalidade no nosso sistema tributário que gera esse contencioso e prejudica o investimento.
O outro ponto é que o Governo aumentou muito os seus gastos. Houve aumentos significativos, desde a PEC da Transição. O Congresso também criou despesas. A receita cresceu depois, mas o gasto cresceu antes.
Então, do ponto de vista macro, como é que alguém investe? Será que os gastos do Governo vão continuar crescendo? Como a conta fecha? Será com aumento de receita? Vai ter inflação? Isso prejudica o ambiente de negócios, prejudica o investimento, prejudica o crescimento econômico.
Mas a economia está crescendo mais do que o esperado. O desemprego está nas mínimas históricas.
Aí tem algumas boas notícias e tem pontos preocupantes.
A boa notícia é que a conjuntura melhor se deve em boa parte às reformas aprovadas no Governo Temer, que parecem ter sido bem-sucedidas, particularmente a trabalhista. E, como já disse antes, o Teto de Gastos deu uma arrumada nas contas, que estavam meio descontroladas, e isso ajudou na queda dos juros.
A economia tem surpreendido, e há esse debate entre os economistas se as boas reformas do Governo Temer aumentaram um pouco o crescimento potencial do País. Ainda não sei dizer, não temos dados para afirmar isso. Tem muita medida que de fato contribui para ganhos de produtividade. Não sabemos quanto.
Mas vimos também ocorrer muitos retrocessos – sobretudo nos dois últimos anos do Governo Bolsonaro e agora – que vão na contramão da produtividade. São grupos de interesse conquistando subsídios cruzados, benefícios, proteções setoriais que minam a produtividade e o crescimento.
Qual o impacto disso? Também não sabemos ao certo. Mas gera o que os economistas chamam de misallocation of capital.
A proteção de empresas ineficientes explica uma boa parte da menor produtividade dos países pobres ou em desenvolvimento. Entre 30% e 60% da diferença de produtividade vem daí, dependendo do país. O Brasil hoje não tem dados para medir isso, mas é o que mostram estudos de outros países.
Então, qual é o saldo líquido? Não sei dizer.
Quando a gente olha o Brasil, desde os anos 80 até antes da pandemia, nesses quarenta anos, o crescimento médio foi de 2,8%. Os demais emergentes crescem muito mais do que isso.
Além de crescer pouco para um emergente, o Brasil tem muita crise. Nesses 40 anos, tivemos 14 crises – e as crises, quando vêm, são bastante sérias.
Os países ricos tiveram, em média, 3 crises nesse período. Quem teve muita crise teve 7. O Brasil teve 14. Temos comportamento de país pobre.
Aproveitamos mal quando o mundo vai bem. Vamos meio na média. O Brasil tem sido um país medíocre.
Quando você olha para os demais emergentes, estamos perdendo oportunidade – estamos empobrecendo em relação aos nossos pares e temos mais crises. E de novo, a gente tem bem mais crise que os demais países.
Os países mais pobres do mundo têm esse tipo de comportamento. Então fica um pouco essa dúvida no ar, será que o crescimento potencial aumentou um pouco em função das reformas do Temer? Pode ser que sim. Tivemos retrocessos depois? Tivemos. Qual é o saldo líquido? Não sabemos.
Quando olhamos para o setor público, o Brasil tem duas características preocupantes em relação a outros países, com implicações para o crescimento.
Quais são essas duas características?
Temos um Estado grande – entre os emergentes, só existe algo comparável em países do antigo bloco soviético, no Leste Europeu. Só que a qualidade da política pública aqui é pior do que nos demais países.
Para um país emergente, tiramos bastante dinheiro da sociedade. Transferimos para o Estado, e o gasto do Estado não vira benefício social como vira nos demais países.
O Brasil é um país estranho, que aumentou a escolaridade, mas o aprendizado dos alunos anda de lado. E a produtividade também. O Brasil destoa em relação a outros países.
Esse é apenas um exemplo. Poderíamos falar de gestão urbana, infraestrutura, energia. Toda a parte regulatória no Brasil é muito frágil. Com frequência há uma sobreposição de reguladores, uma governança mal desenhada. É o que ocorre com a questão da água.
Com governança frágil, sem muita clareza de atribuições de responsabilidade, há muita mudança de regra e judicialização. Estamos falando de áreas de investimento de muito longo prazo.
Tudo isso inibe o investimento. Vemos problemas na oferta de eletricidade até mesmo aqui em São Paulo, a Faria Lima toda tem geradores. E o setor de energia está repleto de subsídios e benefícios cruzados. Então alguém faz uma fazenda de energia solar e quem paga a infraestrutura de transmissão somos nós.
Isso vale para os diversos setores. Então o Brasil tem o problema de qualidade da política pública, de traduzir os recursos que a sociedade confere ao Estado em qualidade.
As regras para o setor público tornam difícil fazer uma boa gestão. É possível? É. O Paulo Hartung conseguiu no Espírito Santo. Mas é muito difícil. É na marra.
Há alguma área em que os serviços públicos não se saem tão mal nas comparações internacionais?
Na saúde a gente não vai mal. O SUS parece que funciona bem. Quando analisamos os indicadores de gasto e de resultado na saúde, vamos razoavelmente bem na comparação internacional.
Pensando na governança do setor público, o ingresso do País na OCDE poderia ajudar?
A OCDE sempre ajuda, tem boas práticas. Porque o País tem essa outra característica, que é sair criando soluções sem olhar para as boas práticas internacionais.
Uma exceção foi a PEC 45, o projeto original da reforma tributária. Mas foi a exceção, não a regra.
A regra deveria ser sempre olhar antes os dados, as boas práticas internacionais. Existem muitos dados sobre qualquer tema relevante de economia, de política social.
Quando você vê as boas histórias de sucesso no Brasil, invariavelmente vemos alguns ingredientes comuns. Tem uma combinação público-privada muito bem desenhada. Tem uma preocupação de conhecer as melhores práticas do mundo. Tem uma abertura para o mundo. E, por fim, espaço para inovação.
Em inovação, eventualmente alguma coisa vai dar mais certo, outra vai dar menos certo, é da vida. Isso quer dizer que o que deu certo fica bem, e quem deu errado pode quebrar, é da vida. Mas precisa dar espaço à inovação.
Onde você vê essa combinação de elementos funcionando no Brasil?
No agronegócio teve isso. Temos ótimas universidades, centros de pesquisa, a Embrapa. Formamos um número impressionante de técnicos em muito boas universidades, inclusive fora do Brasil.
As universidades tiveram a contribuição de estrangeiros, o agronegócio foi uma área de pesquisa muito atuante já antes da Embrapa. Com isso melhoramos o solo do Centro-Oeste, adaptamos a soja.
Esse é um processo de inovação contínua, envolvendo setor privado e setor público.
E tem empreendedores. Alguns deram muito certo, empresas fantásticas, com ganhos de produtividade todo ano há 50 anos, enquanto outras quebraram, foram compradas nesse processo de inovação e concorrência. E é daí que o Brasil está se tornando essa potência impressionante no agronegócio.
É tecnologia. Toda história de ciência e inovação que eu conheço tem muito capital humano e muita preocupação de conhecer o que existe de melhor lá fora.
Outro exemplo é o Porto Digital. Há um ótimo departamento de Ciência de Computação no Recife. Os alunos formados iam embora. Tinha um bairro decadente, que é onde a cidade havia começado, o bairro do Recife, repleto de prédios históricos abandonados.
Fizeram uma parceria com o governo do Estado, com a Prefeitura, fizeram uma governança bem bacana, com muita gente envolvida. Tem um pouco de subsídio para os empreendedores.
O setor dos serviços de saúde da cidade de São Paulo é outro ótimo exemplo de parceria entre setor público e privado. Tem a USP e hospitais como Einstein, Sírio, Oswaldo Cruz, tanta coisa boa, formando gente e sempre em busca de acompanhar a fronteira do conhecimento lá fora.
As boas histórias que eu conheço têm concorrência, inovação, mas não uma dicotomia entre mercado ou Estado.
O preocupante é que a política brasileira, em geral, vai na contramão do que fizeram os casos de sucesso. O governo protege, não deixa a concorrência acontecer, apresenta um plano malfeito.
Será que vale a pena incentivar a indústria naval? Estamos vendo o que está acontecendo nesse mercado lá fora? Será que conseguimos fazer um estaleiro bem-feito? Ou será que vamos proteger a ineficiência?
Muitos analistas falam que o Governo corre o risco de repetir na sua política industrial um filme ruim cujo final foi trágico. Veremos a repetição de erros do passado?
A América Latina tem essa tradição muito forte de repetir esses planos. A Argentina teve os seus nos anos 50. O Brasil teve nos anos 50, nos anos 70.
É a falta de cuidado com o desenho da política pública. Podemos ter política para estimular o desenvolvimento setorial, como foi o Porto digital, o agronegócio e várias outras atividades no Brasil. Mas deveria haver condições para isso. Não é vale-tudo, ir botando dinheiro.
Em geral, é melhor que seja um setor voltado para exportação, com metas claras de desempenho, com prazo para acabar com os incentivos se os objetivos não forem alcançados. Fracassou, acabou.
Com frequência temos fracassos enormes, com custos muito grandes. Olhe para a crise dos anos 50, com dificuldade de pagar as contas externas, inflação crescente, economia estagnada. Como é que terminaram os anos 70? Mesma coisa: inflação crescente, o governo queria estimular a economia, a inflação foi subindo, a economia foi desacelerando, os projetos foram dando muito errado e entramos nos anos 80 numa grave crise.
O que foi que aconteceu na década passada? Veja que os projetos fracassados, os grandes projetos que fracassaram, começaram lá em 2008, 2009. Estamos falando das refinarias, da Sete Brasil… Isso tudo toma tempo, a conta chega depois.
Além de todas essas questões regulatórias que você apontou, os juros reais pagos pelos títulos públicos estão acima dos 6%. É um outro fator que inibe os investimentos empresariais de longo prazo. Como destravar então os investimentos e elevar a capacidade de crescimento do País?
A agenda de crescimento é uma agenda de muitas pequenas reformas. É garantir concorrência, melhorar o sistema de garantias para a concessão de crédito e os marcos regulatórios. Não é uma regra geral. Depende muito dos aspectos técnicos de cada setor para garantir investimentos de longo prazo.
Às vezes até vemos boas iniciativas, mas quando colocamos na prática, o resultado é o inverso do pretendido. É fácil a captura por grupos de interesse.
Veja o caso da Reforma Tributária.
Empreendedor de serviço que fatura como profissional liberal, entre pouco menos de R$ 5 milhões até pouco menos de R$ 80 milhões, fica no lucro presumido. São advogados, economistas, médicos. Estou falando de gente grande. Por que vai pagar menos imposto? Por que esse benefício?
Para mim, o mais chocante desse processo é a facilidade de captura do Estado por grupos de interesse.
Mas vejo falta de conhecimento da técnica. Vários setores vão se arrepender do que conseguiram. No regime especial, vão pagar mais imposto. Não sabiam o que estavam pedindo. O lobby incompetente também funciona.
Tem muita coisa ali na Reforma Tributária que está me preocupando. Deveria ser uma coisa simples. Seria o melhor para o País. Se você quer fazer política social, dá o dinheiro para as pessoas. É muito mais eficiente você dar o dinheiro para as pessoas pobres do que tentar fazer política social via tributação.
Obviamente a tributação beneficia alguns lobbies, que usam o discurso social com desculpa para extrair alguma renda. A margem obscura nos detalhes de implementação é algo preocupante.