Numa época de baixa autoestima no Brasil, uma obra escrita em 1880 acaba de produzir uma rara boa notícia sobre o País na imprensa internacional.

A New Yorker fez justiça à nova (e notável) tradução de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, feita por Flora Thomson-Deveaux.

Em apenas 24 horas, a primeira edição da nova tradução esgotou-se nos EUA, e a Penguin Classics já começou a rodar a segunda, aumentando as chances de que o Bruxo do Cosme Velho tenha sua estatura reconhecida na literatura mundial.

Conheço Flora Thomson-Deveaux de perto.  Em 2015, ela traduziu meu livro “Machado de Assis: por uma poética da emulação” para o inglês.  Uma brilhante jovem pesquisadora e tradutora norte-americana que hoje mora no Rio de Janeiro, Flora traduziu “Brás Cubas” como parte de sua tese de doutorado na Brown University. 

Na tese, além de fazer um relevante estudo crítico, Flora acrescentou notas esclarecedoras que auxiliam o público leitor de língua inglesa a mergulhar na riqueza e na ambiguidade da prosa machadiana. José Saramago recordou que os autores fazem sempre, por assim dizer, “literatura nacional”, pois produzem suas obras num idioma particular. Já a promessa de literatura universal, dizia o português, é sempre obra da tradução, e o excepcional trabalho de Flora confirma essa intuição. 

Na tradução elogiada pela New Yorker, Flora realizou uma façanha: preservou em inglês a cortante ironia machadiana, pois, em lugar de “padronizar” em inglês moderno as frases e os achados do autor de Dom Casmurro, ela ousou ao dar um voto de confiança à capacidade e generosidade do público leitor. Não é esse, aliás, um dos segredos do texto de Machado de Assis? 

Na tradução da palavra-sintoma “Nhonhô”, por exemplo, Flora abriu uma nota, explicou o sentido do termo, “little master”, mas manteve a palavra em português. Deste modo, a relativa estranheza é mais do que recompensada pela imersão na atmosfera da prosa machadiana.  

Eis portanto a chave que abre as portas do fascínio permanente causado por “Brás Cubas”: por meio da escrita do defunto autor, Machado de Assis reinventou-se a si mesmo e radicalizou a própria ideia de literatura, concedendo papel de protagonista ao ato de leitura. 

 
(Haveria tarefa mais urgente que reinventar o Brasil em 2020?)
 

A sutileza não deve passar despercebida. Brás Cubas começa a narrar sua vida no além-túmulo, após a visita da “indesejada das gentes”, no verso definitivo de Manuel Bandeira. Brás Cubas não é, por assim dizer, um autor defunto, ou seja, um autor que acaba de morrer, e sim um defunto autor, isto é, alguém que principia a escrever depois de sua morte!  Estratégia inédita e que leva longe.

De um lado, a inusitada perspectiva do defunto autor permite uma deliciosa crítica a um gênero literário que remonta à Antiguidade: a autobiografia. Ora, não se trata de um gênero impossível? Como narrar a própria vida enquanto ela ainda está sendo vivida? Como saber se amanhã mesmo não teremos uma experiência que alterará o entendimento que tínhamos de nosso passado? É portanto preciso parar de viver, a fim de escrever sobre a vida que já se viveu! 

Leitor arguto da tradição, Machado resolveu o dilema com um sorriso nos lábios: ora, a autobiografia somente deveria ser escrita… após a morte! Vida literalmente fechada para balanço, teria chegado a hora de zerar as contas.

Na contabilidade das perdas e dos ganhos de sua vida, Brás Cubas concluiu sua narrativa: “Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

De outro lado, Brás Cubas também passa a limpo as estruturas mais arcaicas e profundas da formação social brasileira. O defunto autor não deixa pedra sobre pedra em sua denúncia, ainda mais corrosiva porque involuntária. Nada escapa de sua lente desmistificadora: o escravismo, cujas consequências persistem mesmo após a abolição formal da escravidão; a desigualdade estruturadora de relações sociais que se perpetuam sob o signo do privilégio de um número sempre mais exíguo em detrimento de um projeto de país; o rentismo, sugerido nas palavras do narrador no último capítulo do romance, “coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto”, pois, claro está, o suor abundava em rostos alheios.

Brás Cubas foi o passaporte para a reinvenção do autor Machado de Assis. No atual cenário de uma pandemia devastadora, é preciso que o Brasil não espere tornar-se um defunto país para fazê-lo. 

Ainda temos tempo. Algum, pelo menos. 

Um primeiro passo: aprender com Machado que é possível transformar o legado de nossa miséria. 

João Cezar de Castro Rocha é professor titular de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), autor de 13 livros e organizador de mais de 20 títulos, incluindo uma coleção em seis volumes de contos de Machado de Assis.