Lula é um político pragmático. Que não se confunda pragmatismo com compromisso com disciplina fiscal ou políticas públicas bem desenhadas. Significa reagir às circunstâncias de modo a obter resultados práticos, de curto prazo, sem necessariamente zelar pela consistência de suas ações. Cada dia sua agonia. Um dia fala para a militância; no outro, ajusta o discurso ou faz recuos estratégicos.

Lula tenta equilibrar os diferentes interesses conflitantes por meio da ambiguidade, uma marca dos 8 anos de seu governo – não muito diferente de Bolsonaro. O pêndulo oscila para um lado ou outro conforme a conveniência e a necessidade. Com sabedoria, começou seu primeiro mandato reagindo à pressão para preservar o tripé macroeconômico de FHC em um contexto de inflação que chegou a 17%, fruto em boa medida do seu déficit de credibilidade na gestão da economia.

Com seu enfraquecimento político após a crise do mensalão, precisou ceder mais ao PT; depois, aproveitou a crise internacional para inflar artificialmente a economia e eleger Dilma. O mercado financeiro fez vista grossa. Celebrava o país que conquistara o grau de investimento e crescia.

Há uma frase muito repetida entre operadores: “o mercado gosta de ser feliz” – tende a dar benefício da dúvida a governantes. Até Dilma contou muitas vezes com essa boa vontade, o que se revelou um equívoco. Isso se repetiu, recentemente, nas discussões em torno do Auxílio Brasil de R$ 600 e o adicional de R$ 150 por filho, apesar das muitas críticas de especialistas – um programa mal focalizado e mal desenhado que carece de reavaliação como condição para sua expansão.

Houve claramente disposição de investidores em aceitar a PEC de Transição, em um reconhecimento que, sem isso, o sacrifício no corte de despesas seria muito abrupto em 2023. O mercado topou a ideia de um déficit público elevado em 2023 e a substituição da regra do teto combalida.

No pós-eleição, os preços de ativos reagiram positivamente à vitória de Lula. Não é pouca coisa para um país com dívida pública/PIB (e carga tributária) muito superior àquela de países emergentes, e com aumento contratado nos próximos anos. Mas isso não significa aguentar qualquer desaforo.

De tempos em tempos, há correção de expectativas diante de fatos novos, como os deslizes do presidente. As expectativas foram recalibradas depois da crítica emotiva à “tal” disciplina fiscal, como se fosse algo incompatível com cuidar dos que precisam mais. São, na verdade, vasos comunicantes. O aumento da insegurança alimentar está certamente associado à inflação elevada (desde setembro de 2020 a inflação de alimentos roda quase que ininterruptamente em dois dígitos), em boa medida causada por excessos fiscais.

Sem calibrar bem a PEC da Transição e sem o compromisso com regras fiscais e reformas estruturais para conter o crescimento de despesas obrigatórias, será difícil o Banco Central encontrar espaço para promover o corte tempestivo dos juros – lembrando que os núcleos de inflação continuam próximos de 10% –, o que elevará o sacrifício dos mais pobres por conta do recrudescimento do mercado de trabalho. Nessas condições, não há política social que tenha sua efetividade preservada.

Não é só isso. Lula quer acomodar a militância, mas isso não equivale a cuidar dos mais pobres. Vale mencionar resultado de pesquisas qualitativas que apontam que as camadas populares, diferentemente do passado, anseiam por igualdade de oportunidades e condições para empreender e prosperar, algo divergente da visão tradicional da esquerda.

O pragmatismo de Lula em um contexto de muita pressão por gastos sugere que o pêndulo estará inclinado para o deslize fiscal. Será um governo que irá, com frequência, testar os limites do mercado. A estratégia pode parecer o caminho mais fácil do ponto de vista político, mas é também mais estreito e arriscado do que no passado, diante do tamanho do desafio – o Brasil precisa de um esforço fiscal na casa de 4% do PIB para estabilizar a dívida pública/PIB nos próximos anos. A estratégia cobrará seu preço, por elevar a percepção de risco no mercado. Difícil enxergar um cenário de rápida volta da Selic a 6,5%, o patamar do final da gestão Temer.

Teremos muita volatilidade adiante, com limites sendo testados e um mercado que irá ainda se acostumar com o estilo do presidente. Muitos operadores, jovens, não estavam na ativa nos governos Lula. Mas tem um lado saudável disso tudo: delinear as restrições objetivas para um governante pragmático.

Zeina Latif foi secretária de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo e é autora do livro “Nós do Brasil: nossa herança e nossas escolhas”.