“Nosso governo não será um governo do PT,” disse o candidato Lula em outubro de 2022, em um evento da ‘frente ampla,’ no Teatro Tuca, em São Paulo. “É importante que você, Gleisi [Hoffmann], que é presidente [do PT], saiba: nós precisamos fazer um governo além do PT.”

Na plateia, figuras nacionais não militantes do PT, como Persio Arida, Henrique Meirelles, José Gregori e Neca Setúbal.

“O que fez Lula depois de eleito? Encontrou-se com [o autocrata venezuelano] Nicolás Maduro e passou a atacar [o então presidente do Banco Central] Roberto Campos Neto,” diz o economista Fabio Giambiagi nesta entrevista ao Brazil Journal.

O Presidente também promoveu um grande aumento dos gastos públicos, ao contrário do que havia feito duas décadas antes, quando assumiu o Planalto pela primeira vez. 

Para Giambiagi, o PT “dinamitou o espírito da frente ampla” e desperdiçou mais uma oportunidade histórica de promover um consenso ao redor de reformas essenciais para o futuro do País.

Agora, Giambiagi está lançando A vingança de Tocqueville (Alta Cult; 383 páginas), um livro que analisa a economia brasileira desde 1930 mas esmiúça em maior detalhe os últimos 40 anos, que coincidem com o período pós-redemocratização e a trajetória profissional do autor.

A “vingança” do título é que o País estará condenado à estagnação caso não consiga forjar uma coalizão modernizadora “tocquevilliana”, conciliando “o mercado e a urna” para superar o populismo e conquistar objetivos duradouros de longo prazo.

“O País precisa dramaticamente de uma liderança política que assuma a tarefa de mudar a rota desse transatlântico em que estamos todos embarcados, navegando na direção errada,” diz Giambiagi, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV.

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Nascido no Rio de Janeiro de pais argentinos (ambos cientistas), Giambiagi viveu a maior parte da infância em Buenos Aires. Tinha 14 anos quando, em 1976, voltou a morar no Brasil com os pais e as duas irmãs, depois do golpe militar na Argentina. No livro –  seu 44°, contando aqueles realizados como organizador – o economista traça paralelos interessantes entre os países. Um dos capítulos se intitula A ‘argentinização’ do Brasil.  

A seguir, uma síntese da nossa conversa.

O livro traz um panorama da economia brasileira desde 1930, com Getúlio Vargas, e analisa particularmente os últimos quarenta anos, desde a redemocratização de 1985. Qual o balanço que você faz desse período?

Tenho 42 anos de atuação profissional. Sou de uma geração nascida no começo dos anos 60, que viveu a adolescência no Governo Militar e ingressou na vida adulta mais ou menos com a redemocratização. O sentimento meu e de amigos é de frustração.

Na primeira década do novo milênio houve uma continuidade nos avanços sociais. As contas fiscais estavam relativamente em ordem, inflação controlada, um período de bom crescimento. Mas na década de 2010, o Brasil se desencontrou de si mesmo.

É impossível não concluir que o País fez progressos. Mas há um grande sentimento de frustração.

O livro procura trazer uma reflexão acerca da combinação necessária entre políticas econômicas adequadas, por um lado, e lastro político de outro.

Como democrata, reconheço que a primazia será sempre da política. Quem vai definir o que pode ser feito e o que não ser feito? É a política. Não adianta nós, os economistas, criarmos a ilusão de que haverá uma solução mágica que não passe por um conjunto de forças.

Nesse sentido, o que a gente tem assistido nos últimos anos é absolutamente deprimente. Em vez de discutir as questões a sério, estamos debatendo coisas ridículas ou retrocessos inaceitáveis, como essa tentativa criminosa e absurda de golpe de Estado.

Então o Brasil se perdeu em 2010?

Na verdade, acredito que o Brasil tenha se perdido antes, em 2003.

Logo no início do primeiro Governo Lula? Por quê?

Porque havia um conjunto de circunstâncias excepcionalmente favoráveis para um tipo de junção de forças políticas.

Havia um enorme clima de cordialidade entre Fernando Henrique e Lula. Mesmo com a mudança política, a necessidade de uma guinada cobrada pelos eleitores, havia espaço para algum tipo de reconhecimento de que, ao mesmo tempo, era necessário fazer mais avanços sociais sem descuidar do esforço de estabilização.

O que está acontecendo no Lula 3 acaba por tirar bastante o brilho dos governos Lula 1 e 2.

Por quê?

Fica muito claro, a não ser que o analista seja um petista apaixonado, que uma parte importante daquilo que aconteceu de positivo do País entre 2003 e 2010 esteve associado a dois elementos fundamentais: todo o esforço de pavimentação prévia do governo FHC e a enorme sorte que o País deu em função do boom das commodities, em razão da globalização, do aumento do peso da China na economia mundial.

Quando tivemos a crise cambial de 1999, sabe quanto das exportações para a China era representado em relação ao total das nossas exportações? 1%. De cada US$ 100, apenas US$ 1. Ao longo do Governo Lula, o percentual subiu a cerca de 30%.

O Brasil foi um dos países que mais se beneficiaram disso – e Lula soube capitalizar. O Lula, como já disse alguém, não sabe governar com pouco dinheiro. É um tipo de gestão que só funciona bem com vento a favor. Tem enormes dificuldades para lidar com situações de constrangimentos, que são inerentes a qualquer governo.

Naquelas circunstâncias, em 2003, havia como dar sequência ao que havia sido feito desde o Real e, com lastro político, reduzir a dependência dos interesses fisiológicos que sempre existiram – e que foram particularmente gulosos nos últimos 25 anos.

Essa oportunidade se perdeu num ato de absoluta mesquinharia do PT, que não reconheceu a herança efetivamente bendita – que só foi reconhecida muitos anos depois por algumas pessoas intelectualmente honestas, como Fernando Haddad e poucos outros. Na prática, foi qualificada de uma forma politicamente abjeta: ‘herança maldita.’

A antiga oposição chegou a dar votos que foram decisivos para aprovar reformas do Governo Lula. Não tendo havido reconhecimento desse esforço, houve um acirramento da polarização, que foi crescendo até derivar nas cenas indecentes que vimos em meados das décadas de 2000 e 2010.

Mas em 2022 surgiu uma nova oportunidade histórica, quando o PT coordenou uma frente ampla nas eleições. Houve aquela reunião no Tuca, com a presença de Henrique Meirelles e Persio Arida, entre outros.

Em um momento de seu discurso, Lula olhou para Gleisi Hoffmann e disse que a política do Governo não seria ‘exatamente a nossa,’ porque seria um Governo de frente ampla.

A promessa foi cumprida?

Lula deu alguns postos meio decorativos para pessoas não vinculadas ao PT. Aí se encontrou com Nicolás Maduro e começou a atacar o Roberto Campos Neto e ‘abrasileirar’ os preços cobrados pela Petrobras, colocando por terra o esforço de anos da empresa de colocar as contas em ordem depois da situação dramática vivida em meados da década de 2010.

Foi o contrário do que havia ocorrido há vinte anos, quando Lula assumiu pela primeira vez. Vou citar dois números simbólicos que ilustram as diferenças.

Em 2003, os gastos primários caíram 4%. Com isso, o Governo conquistou credibilidade que depois lhe permitiu reduzir a inflação e os juros.

Em 2023, o que ele fez? Aumentou os gastos públicos em 12%. Mesmo se tirarmos os precatórios atrasados, houve um aumento de 7%.

Lula dinamitou o espírito da frente ampla. O PT teve uma segunda oportunidade histórica de fazer uma aliança e a desperdiçou.

Podemos ser enganados uma vez, duas vezes. Mas no aprendizado da vida, dificilmente seremos enganados pela terceira vez.

Acredito que seja zero a possibilidade de reeditar uma frente ampla no futuro.

No livro, você cita a ‘ética do trabalho’ de Tocqueville – segundo a qual os governantes devem ensinar aos cidadãos que a riqueza é resultado do esforço – em contraposição à ‘ética do aventureiro’ descrita por Sérgio Buarque de Holanda em ‘Raízes do Brasil’ – o ‘ideal de colher o fruto sem plantar a árvore.’ Como superar a ‘vingança’ de Tocqueville e Buarque de Holanda?

Diria que nós, economistas, estamos tentando fazer esse debate, Há uma convergência razoável do que deveria ser feito. Mas precisa haver uma articulação política que dê sustentação – e liderança política.

Liderança significa liderar.

Lula, de maneira geral, faz aquilo que a maioria quer. É assim desde os tempos de sindicalista, nos atos da Vila Euclides, em São Bernardo.

Liderar é mudar o rumo de um país quando necessário – com votação democrática, obviamente, respeitando as leis e a liberdade de expressão.

Foi o que, em diferentes situações, fizeram Margaret Thatcher no Reino Unido e Felipe González na Espanha.

González, depois de 30 anos de militância no socialismo, percebeu que ou a Espanha se integrava ao capitalismo europeu ou não tinha futuro. Fez campanha para o ingresso na OTAN, apesar de ter sido contrário a isso por anos a fio.

Algo parecido foi feito por Fernando Henrique, quando adotou um grande conjunto de reformas.

Hoje o que se vê é um Governo preso a ideias ultrapassadas e incapaz de se reinventar. Enquanto isso, a oposição está associada a figuras como a do Governador de São Paulo, cujo exemplo de liderança é botar na cabeça o boné da candidatura de Trump – que vai aumentar a taxação de produtos brasileiros.

O País precisa dramaticamente de uma liderança política que assuma a tarefa de mudar a rota desse transatlântico em que estamos todos embarcados, navegando na direção errada.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vem defendendo o que ele chama de justiça tributária. É uma maneira de recompor receitas e sustentar o arcabouço fiscal. Qual a sua avaliação?

É uma política extremamente meritória. Só que, novamente, a miopia do PT pode estragar uma boa ideia, com essa proposta amalucada e absurda da isenção de IR para quem ganha até R$ 5.000 ao mês. Isso aparentemente se tornou uma obsessão do Presidente, mas traz riscos enormes para o equilíbrio macroeconômico.

O argumento oficial é reduzir a taxação para os mais ‘pobres’ – entre aspas – e compensar taxando mais os mais ‘ricos’ – entre aspas.

Vamos aceitar que, por um milagre, a isenção de um lado seja idêntica à taxação do outro lado. Ainda assim, continuaria havendo um déficit primário, enquanto na realidade precisamos ter como objetivo um superávit de ao menos 1% do PIB, como era o desenho original do arcabouço.

Além disso, sabemos como funcionam as coisas no Congresso. O benefício será aprovado imediatamente, e a compensação vai entrar na fila das negociações políticas.

Por fim, mesmo que a compensação ocorra, existe uma questão de descasamento temporal. A redução de impostos será imediata, para valer em 2026, mas a compensação viria apenas no ano seguinte, em março de 2027, no pagamento dos impostos devidos na declaração do IR.

O que acontece com a conta de 2026? Nós já temos um buraco e vamos aumentá-lo ainda mais. É um erro primário.

Muitos economistas fazem as contas e acham improvável que o Brasil se torne uma nação desenvolvida, ao menos no médio prazo. Poucos foram os países que fizeram a transição da renda média para a renda elevada. Quais as lições em comum dessas economias que tiveram sucesso?

Há um denominador comum, algo fundamental, que é a integração com a economia mundial. O Brasil, nesse sentido, tem um problema idiossincrático, que vai muito além do PT, com a exposição à competição.

Mais uma vez, falta uma liderança política para mudar isso. Precisamos ter a ideia clara de que, sem essa integração maior às cadeias produtivas, sem uma exposição à competição internacional, será muito difícil ter sucesso no mundo de hoje.

Além disso, será necessário enfrentar os desequilíbrios nas finanças públicas.

Nos últimos 40 anos tivemos duas mudanças fundamentais na economia: a inflação se tornou um problema muito menor do que era nos tempos da hiperinflação, e a dívida externa deixou de ser uma preocupação.

Mas continua o desafio de enfrentar o déficit público. Essa já era uma preocupação na transição democrática, em 1985, e continua sendo uma prioridade. Tivemos alguns bons anos no meio do caminho, mas é uma questão não resolvida.

O mais constrangedor é que, quando você olha os números com cuidado, vemos que não é algo simples, mas também não é tão complicado assim.

O que a Argentina fez em 2024 foi absolutamente impressionante. Eles reduziram o gasto público em 5% do PIB. Se alguém tivesse me dito em janeiro de 2024 que eles fariam isso, eu teria chamado essa pessoa de maluca.

Então, como é que o Brasil não consegue fazer com que o gasto público cresça menos do que 2,5% ao ano? Porque é disso que se trata, ninguém está falando em cortar 5% do PIB, como fez a Argentina, nem mesmo cortar 2% do PIB.

Estamos falando em fazer com que o gasto cresça em um ritmo menor.

NOTA DO EDITOR: Pois é, Lula…. Nem o básico?

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