Luciana Borio dedicou toda sua carreira a se preparar para epidemias.

Nascida no Rio, Luciana começou a trabalhar para o governo americano em 1999. Até meados do ano passado, era a diretora de preparação médica e biodefesa do Conselho de Segurança Nacional, cargo no qual ajudou os EUA construir o sistema que previa, entre outras coisas, a preparação do país para um cenário de pandemia. 

Luciana se mudou para os EUA há mais de 30 anos, fez medicina na George Washington University, residência em Cornell e fellowships em doenças infecciosas no National Institutes of Health e na Johns Hopkins. Depois da academia, foi cientista-chefe da Food and Drug Administration (FDA), a Anvisa americana. 

Hoje, trabalha na In-Q-Tel, um braço de corporate venture que investe recursos da CIA (sim, aquela CIA) em tecnologias sensíveis para a segurança americana — entre elas, startups de biodefesa.

Ela falou com o Brazil Journal de sua casa nos EUA. 

O que ainda falta saber sobre esse vírus?

Não sabemos ainda o que é necessário para gerar uma proteção. Cada vírus tem uma resposta imunológica e a resposta imunológica desse vírus varia muito de pessoa pra pessoa. Também não sabemos quanto tempo a proteção dura: é possível que ela dure só alguns meses. Isso cria muitas incertezas em relação ao desenvolvimento das vacinas. 

Outra parte, que entendemos mais, é o modo de transmissão. Temos muitas experiências com vírus transmitidos por fontes respiratórias. Mas a maneira com que esse vírus se expressa nos organismos é muito variável. Muito diferente de qualquer outro vírus respiratório que conhecemos. O número de manifestações — cerebral, cardíaca, renal — varia muito de pessoa para pessoa. É um mistério.

Teremos essas respostas nos próximos meses, ou não necessariamente?

Acho que teremos sim. Porque os estudos para a vacina vão ser muito importantes em criar esse tipo de informação. Normalmente, já temos essas informações antes de chegar numa fase tão avançada do desenvolvimento da vacina. Mas nesse caso, como tudo está indo muito rápido, vamos ter estudos avaliando vacinas — em que as pessoas são randomizadas para placebo ou para uma das vacinas consideradas — e vai ter uma certa incidência de infecções nesse grupo que vai participar do estudo (30 mil pessoas para cada vacina mais ou menos). Vamos poder aprender de forma mais consistente e rigorosa como as pessoas estão desenvolvendo a imunidade ao vírus, e se a vacina foi suficiente para prevenir. 

No estágio atual, em que já há várias vacinas na Fase 3, você acha que ainda tem risco de não conseguirmos encontrar uma vacina para o vírus?

Não temos certeza ainda. A vacina pode até proteger, mas pode proteger só por 3 meses, 6 meses. E o vírus pode mudar. Mesmo que a gente consiga ter uma vacina de sucesso que proteja, será que ela vai ser igual à da Influenza, que tem que ser dada todo ano, e a sua fórmula vai ter que mudar todo ano? Ainda não sabemos. 

Outra coisa: as tecnologias que estão sendo usadas para essas vacinas são bem variadas e há algumas que ainda não tem histórico de sucesso. Existe pouquíssima experiência com essas vacinas. Então, os estudos que estão sendo feitos vão ser muito importantes para criar esse database. 

As vacinas normalmente são divididas em dois tipos: as ‘gene-based’, que são as tecnologias novas, e as ‘protein-based’, que são a maior parte das vacinas no mercado hoje, inclusive as vacinas contra gripe. São dois tipos de tecnologia e tem vários tipos de vacinas que se incluem nesses dois grupos. Nas gene-based, o ser humano recebe um pedacinho do código genético, e nosso organismo vai produzir a proteína que estimula o sistema imunológico. No protein-based, nós recebemos a proteína diretamente e a proteína que estimula o sistema imunológico a criar uma proteção. 

A vacina ‘gene-based’ é interessante porque ela pode ser preparada de maneira muito rápida. Demorou poucas semanas para a Moderna entrar no estudo clínico depois que ela recebeu o código genético do vírus. Mas o problema é que essa vacina é difícil de produzir em volumes grandes, porque nunca foi feito, e não sabemos se ela vai ser suficiente para estimular o sistema imunológico e quanto tempo vai durar essa proteção. 

As gene-based tem vários tipos, mas hoje as que tem se falado mais são a mRNA, uma sendo desenvolvida pela Moderna e outra pela Pfizer. Também tem a da Inovio, que é DNA. 

Quando a primeira vacina ficar pronta, vai haver um anúncio global, e haverá fábricas prontas para produzir? Como vai ser esse dia?

Normalmente uma vacina progride de forma linear, você tem o desenvolvimento e depois começa a fabricar em grande quantidade. Mas não é isso que estão fazendo hoje. Nos EUA, tem a OWS (Operation Warp Speed), um esforço para o governo já fabricar essas vacinas antes mesmo de sabermos se elas vão funcionar.  Isso pra não perder tempo… Podemos perder muito dinheiro, mas se as vacinas funcionarem, vai ter muito mais vacinas prontas para serem distribuídas. 

Na verdade, precisamos de muitas vacinas, não só de uma. Porque nenhuma companhia hoje, nem as maiores, tem a capacidade de fabricar o volume necessário para suprir a demanda global. Por isso o que queremos é que todas tenham sucesso. 

Então, vamos ter múltiplas vacinas coexistindo?

O ideal seria uma única vacina potente e para todos. Mas isso não é realista, porque nenhuma empresa vai conseguir fazer o suficiente. Então vai ser um portfólio mesmo, e na melhor das hipóteses várias vão funcionar, e vai ter mais volume. 

Então podemos ter cinco vacinas diferentes, cada uma com um resultado e um tempo de proteção?

A primeira vacina que devemos ter resultado é a Moderna. Em alguns meses vamos saber se essa vacina funciona ou não. A Moderna vai ser a primeira, mas ela não tem muito volume. A segunda vai ser a AstraZeneca, de Oxford. Vão ser vacinas diferentes e não vai ter o suficiente da mesma vacina para todo mundo. Nunca tivemos que enfrentar uma situação dessas. As vacinas contra Influenza, por exemplo, são várias, mas o consumidor não sabe que são diferentes. Tem vários fabricantes mas a tecnologia é mais ou menos parecida, e o consumidor não presta muita atenção. Mas nesse caso, acho que o consumidor vai prestar muita atenção e vai ser importante comunicar com clareza o que se sabe a respeito de cada vacina.

Existe uma expectativa de quando o mundo pode atingir a imunidade de rebanho?

Para um vírus como esse, precisamos ter mais ou menos 70% da população imune, ou com imunidade natural ou com vacina, ou uma combinação dos dois. Hoje, mesmo nas áreas onde tem muita infecção, a imunidade da população vai no máximo até 20%. Então, tem muita gente ainda que vai ter que ser infectada para atingir a imunidade de rebanho. Essa não é uma estratégia realista, porque pra chegar lá vai ter que morrer muita gente. 

Você acha então que é muito provável que mesmo nesses países onde já teve uma queda grande nos casos, que tenha uma segunda onda de infecções nos próximos meses?

Com certeza haverá várias ondas… As pessoas lembram de 1918 (a Gripe Espanhola), aquelas ondas de infecção. Mas o mundo era muito diferente naquela época. Hoje em dia, esse vírus gira o mundo muito mais rapidamente, é muito mais dinâmica a transmissão global, mesmo com o bloqueio de fronteiras… o comércio não está bloqueado. Esse vírus vai continuar com várias ondinhas. Na verdade, não vai ter essa coisa de segunda onda (um pico), vão haver várias ondas regionais, muito diferentes em cada localidade. Desce de Nova York para Miami, depois sobe de Miami pra Nova York, e por aí vai. Essas ondinhas vão continuar até surgir a vacina.  

Um pastor de ovelhas no interior da Mongólia foi diagnosticado no fim de semana com a peste bubônica.  O tempo entre uma pandemia e outra vai ser mais curto? Ou isso é imprevisível?

Acho que estamos na era das epidemias. Vamos ver muitas epidemias. Epidemias são inevitáveis, mas pandemias são controláveis. Se tivermos as medidas certas para identificar e conter as epidemias, elas não vão virar pandemias. Com certeza estamos na era das epidemias, e por quais motivos? Pela urbanização, volume de viagens, etc. Por isso é tão importante ter os sistemas globais para detectar essas epidemias e tomar as medidas necessárias antes delas virarem pandemias. 

O que você aconselharia ao aparelho de Estado brasileiro fazer em termos de infraestrutura ou de processos para deixar o País o mais preparado possível para uma próxima pandemia? O que os EUA têm que o Brasil não tem, por exemplo?

Uma grande surpresa que aconteceu nesta pandemia é que os países com alto nível de desenvolvimento de saúde não necessariamente foram os países que conseguiram lidar melhor com isso, entre eles os EUA. Então, não é uma questão do que tem aqui e não tem no Brasil. Mas são coisas muito fundamentais, que funcionam para todos. Um deles é o sistema de detecção de epidemias. Tem vários sistemas possíveis, e isso é fundamental, porque sem detectar não vamos saber o que está acontecendo. A outra parte é desenvolver um sistema de diagnóstico envolvendo o sistema privado e usando tecnologia de primeira linha… o fato de não termos tido diagnósticos suficientes por vários meses, vimos como isso torna muito difícil o combate ao vírus e tomar as medidas necessários. Hoje sabemos que diagnóstico é fundamental e vale a pena investir numa tecnologia. Isso aumenta a infraestrutura de saúde do País, o que é bom para qualquer momento. 

Outra coisa importante é a capacidade de criar distanciamento social sem ter uma interrupção enorme na economia. Acho que a maneira bruta como foi feita —, talvez porque viram a China fazendo e acharam que era o caminho — é uma coisa que não foi necessária na minha opinião. E que não foi estratégica, porque não conseguimos atingir o objetivo. Claro que foi importante por algumas semanas, tinha que ser feito, porque o sistema de saúde estava inundado de pacientes. Mas para o futuro, como fazer isso de forma mais inteligente? É muito difícil em alguns setores, mas o impacto de fazer uma abordagem mais estratégica vai ser importante para a saúde pública e para causar menos dano desnecessário para a economia. Mas não devemos ter a percepção de que pandemias sempre vão causar danos à economia. A ideia é preveni-las.  

Você acha que há motivos para olharmos para trás e achar que os lockdowns foram errados, foram um desperdício de recursos, ou que o mundo perdeu mais do que ganhou?

Sabemos que eles foram necessários na época. É igual quando o mercado de ações tem o circuit breaker… foi uma emergência. Mas desde o começo falavam que o lockdown não devia ser definitivo, que era algo temporário, e que tínhamos que ter uma estratégia para fazer o distanciamento sem o lockdown. O problema é que nós não desenvolvemos esse plano. Tem que haver estratégias que são muito melhores que o lockdown… é claro que comer dentro de um restaurante, ir num jogo de futebol são coisas que não tem como fazer durante uma pandemia, mas tem outras coisas que dá.

Toda pandemia vai ter um efeito na economia global, isso é inevitável. Mas perder essa quantidade de dinheiro que estamos perdendo em termos de PIB isso é evitável. Certos setores vão sempre sofrer um baque, mas não precisa ter esse efeito tão grande quanto o que está acontecendo agora. Por exemplo, a abertura e fechamento de restaurantes pode ser dependente da prevalência da doença naquela área. E com diagnóstico temos como saber a prevalência, e de uma forma mais dinâmica, usando big data, para fazer recomendações. A pessoa poderia ver qual o risco dela ir num restaurante X com base no que está acontecendo em sua comunidade. E o poder público pode recomendar fechar e abrir com base nisso também. 

Temos que lembrar que o lockdown não é mágico — o que é mágico é o distanciamento social. Por isso estou insistindo numa abordagem mais estratégica, com colaboração da população e uma boa comunicação do governo.

Se a vacina começar a ser fabricada entre dezembro e janeiro, e em seis meses você vacinar metade do mundo ou o mundo inteiro, você acha que em julho do ano que vem podemos estar levando uma vida normal? Ou ainda precisaremos de distanciamento social?

Eu acho que vai demorar um pouco. É um palpite, mas acho que até setembro, outubro do ano que vem ainda vamos estar lidando com isso. O ser humano no mundo inteiro vai ter que aprender a lidar com pandemias. É igual andar de bicicleta: você não anda todo dia, mas tem que aprender a andar porque o dia que o carro quebrar, você vai ter que ficar de bicicleta por uma semana.

Quando tiver a vacina, acho que vamos voltar ao normal, mas tem coisas que não vamos querer fazer. As pessoas não vão querer ir pro escritório tossindo, doentes, e dizer que é só uma alergia… não vão querer ficar numa sala de reunião ou no cinema com um monte de gente tossindo. As pessoas não vão tolerar mais isso. Acho que isso veio pra ficar.

Mas vamos lembrar que tem coisas pra fazer no futuro. Na Ásia, durante a temporada de gripe, todo mundo usa máscaras todo ano.

Mas você está estimando então que só lá pra setembro do ano que vem a vida volta ao normal?

Eu acho que vai ser mais ou menos isso. Mas é um palpite.

Alguma autoridade do governo brasileiro ligou pra você desde que começou a pandemia, pra perguntar alguma coisa?

Não.

Entendo.