Ágil e direto, Maguila – Prefiro Ficar Louco a Morrer de Fome surpreende como um nocaute.
Ao mostrar a errante e improvável trajetória de José Adilson Rodrigues dos Santos, o Maguila (1958-2024), a série, dirigida por Rafael Pirrho e exibida em quatro episódios pela Globoplay, não apenas cumpre seu papel de recuperar a trajetória de um símbolo do esporte brasileiro do século passado como mostra a relação com a fama do Brasil dos anos 80 e 90.
A primeira confirmação é o fato de que – com exceção do futebol – os atletas que chamam a atenção do brasileiro (Ayrton Senna, Guga Kuerten, Hortência, João do Pulo, Éder Jofre) só se sobressaem quando ganham uma exposição maior fora das pistas, das quadras ou, no caso, dos ringues.
O peso-pesado, de aspecto tosco e vocabulário limitado, foi um bom exemplo. De imediato, Maguila conquistou muita gente com um estilo entre a simplicidade e a simploriedade. A lista de fãs vai de Luciano do Valle a Jô Soares, de Marília Gabriela a Raul Gil, de Leão Lobo a Tom Cavalcante. Muitos desses, inclusive, deram depoimentos que ajudam o espectador a compreender a complexa personalidade do boxeador.
Nascido em uma família pobre de Aracaju, Maguila já vivia em São Paulo antes da maioridade, trabalhando como pedreiro na construção civil. Seu pai era um estivador, analfabeto. A tragédia ele conheceu na infância. Maguila teve 20 irmãos: seis morreram ainda crianças; os outros 14 precisaram sair de Aracaju para buscar melhor sorte em subempregos em São Paulo e no Rio.
A série sugere que a maior inspiração de Maguila foi Muhammad Ali, mas me pareceu ter vindo muito mais da ficção. Maguila devia mais a Rocky Balboa, do filme de Sylvester Stallone, do que a qualquer outra coisa.
Para Maguila, o boxe surgia da necessidade. Daí a frase inicial do filme, retirada de uma entrevista concedida ao Jornal da Tarde em fevereiro de 1984, em que o pugilista admitia ao repórter não temer os eventuais riscos à saúde e as previsíveis sequelas que acompanham a vida de quem se dedica ao boxe.
Seus socos eram de raiva contra a pobreza, sua revolta era contra a vida. Assim, o risco a ser corrido era em nome da oportunidade de melhorar de vida. “Não tenho medo de ficar louco. Não deve ser pior do que passar fome,” definiu Maguila.
Ele, que começou nas lutas amadoras, percebeu rápido que poderia ganhar mais ali do que empilhando tijolos. Maguila, que também chegou a trabalhar como leão-de-chácara e não gostava do apelido que já carregava (queria ser chamado de Godzilla), começou então a procurar emprego nas academias de São Paulo.
O ator David Cardoso, o rei da pornochanchada, foi um dos primeiros a intuir que podia estar diante de um campeão – e decidiu apostar em Maguila. Assistindo a uma luta, o ator se apiedou ao tomar conhecimento de quanto Maguila ganhava como prêmio, e resolveu presenteá-lo com um cheque no mesmo valor.
O grande salto ocorre quando a trajetória de Maguila cruza com a de Luciano do Valle.
O jornalista, que pouco antes se desligara da Globo, onde era um dos nomes de destaque da programação esportiva, havia passado uma temporada nos Estados Unidos e voltara com a ideia de montar um canal que transmitisse uma programação esportiva 24h por dia. Luciano acreditava ser possível ter audiência com partidas de futebol, vôlei, basquete, Fórmula Indy e até sinuca.
Esse, inclusive, é um dos pontos curiosos do documentário, quando o repórter Elia Júnior detalha como era montada a grade, com destaque para a sinuca, uma atração tranquila para as manhãs de domingo e que transformou o jogador Rui Chapéu em uma figura conhecida dos telespectadores.
Ou ainda a opção pelo campeonato italiano de futebol como o prato principal para os meios-dias de domingo, em sintonia com a macarronada da Mamma.
Maguila foi um símbolo dessa nova ideia de transmissão televisiva. De início, tudo deu certo. Pelo canal foi possível acompanhar a ascensão do novo ídolo – carismático à sua maneira – que enfileirou uma sucessão de boas performances e nocautes até começar a ser derrotado, primeiro para o argentino Daniel Falconi e depois para o holandês André van den Oetelaar, as duas em 1985.
Como em Rocky, Maguila teve sua redenção no ano seguinte e, em duas revanches contra os mesmos adversários, saiu vencedor.
A boa fase permaneceria até o final da década, aí incluído um triunfo por pontos – e por isso mesmo contestado – diante do norte-americano James “Quebra-Ossos” Smith.
Até então com 35 vitórias, Maguila parecia em ascensão, mas aí veio a decadência. Primeiro com a não confirmação de uma aguardada luta contra Mike Tyson. Depois pelos dois nocautes: um contra Evander Holyfield, outro contra o veterano George Foreman.
A série recupera com detalhes a proximidade e o posterior rompimento de Maguila com Luciano do Valle, dando os devidos detalhes de como cada um deles se beneficiou do talento do outro. Afastados mas eternamente ligados, Maguila e Luciano voltaram a ocupar o mesmo espaço quando o primeiro, já debilitado, prestou sua última homenagem ao segundo, comparecendo ao velório do jornalista em 2014.
Longe do primeiro time do boxe, Maguila procurou seguir em evidência aceitando lutas pelo interior do Brasil. Ex-atleta, aumentou sua presença nos mais variados programas televisivos. Até comentarista econômico do telejornal Aqui e Agora ele foi.
Assim, o documentário transcende a figura do esportista, acompanha a queda (com os transtornos cognitivos resultantes do excesso de porradas, a chamada “demência pugilística”) e dá um tom humano – sem pieguice – à história.
O Maguila distante dos ringues ficou ainda mais errante e imprevisível. Era agressivo em casa e no trânsito, perdia a paciência facilmente e não reconhecia pessoas próximas. Para piorar, suas economias ao longo dos anos foram gastas com inúmeros amigos e, principalmente, parentes, muitos deles perdulários e sustentados integralmente pelo lutador.
Ilustrando essa decadência são ótimos os depoimentos de amigos, biógrafos, e em especial do filho caçula (que recorda como o pai o acolheu quando ele revelou ser gay) e da viúva Irani, que enfrentou suas “lutas” pessoais para ficar ao lado dele.
Mais do que qualquer coisa, Maguila foi um herói tipicamente brasileiro.











