Ali em meados de 2020, Ana Cañas era mais uma das vítimas diretas da pandemia. Sem poder se apresentar ao vivo, a cantora tentou captar patrocínio para uma live de Dia dos Namorados – mas nenhuma empresa teve interesse em bancar o projeto. Ana então fez uma vaquinha junto aos fãs, em troca de lhes presentear com um evento diferenciado.

Foi assim que o tal show do Dia dos Namorados – que incluiria canções da própria Ana e parcerias que fez com nomes como Arnaldo Antunes e Nando Reis – foi trocado por um tributo a Belchior (1946-2017), que não era um estranho no vasto repertório da intérprete. Ela havia cantado Alucinação na entrega de um prêmio de teatro, e integrou um projeto de cantoras para revisitar as criações do cantor e compositor cearense. 

Ana Cañas Canta Belchior estreou em moldes franciscanos – ela se fazia acompanhar pelo violonista Fabá Jimenez e o pianista Adriano Grineberg. Mas a coisa deu tão certo que virou álbum em 2021, também bancado pelos fãs, e depois ganhou uma turnê – cujo encerramento está previsto para 26 de maio no Vivo Rio (no Rio de Janeiro, óbvio).

Ana Cañas Canta Belchior rendeu ainda um DVD ao vivo, com participação de Ney Matogrosso, e um show gravado em Sobral, a terra do compositor.

Mais do que essas gravações, contudo, aquela live original deu o pontapé numa ressignificação da carreira tanto de Ana Cañas quanto de Belchior para o grande público.

Uma das vozes mais viscerais da sua geração – e olha que ela despontou no mesmo período que Céu, Mariana Aydar e Tulipa Ruiz – Ana Paula Hipólito Cañas nasceu em São Paulo em 14 de setembro de 1980. O sobrenome da família é uma dica da autêntica tragédia grega que sua vida pessoal se tornou. O pai de Ana morreu de complicações com o álcool (nos shows ela conta que o acompanhou em diversas internações), e o irmão morreu afogado numa praia do litoral norte. As relações da jovem Ana com a mãe foram tempestuosas a ponto dela sair de casa para morar com a avó e posteriormente num quarto de pensão.

A música surgiu em sua vida quase por acaso. Na eterna batalha por alguns trocados, soube de um teste para uma peça de teatro onde era preciso saber cantar – e cantar Billie Holiday. Foi ao local e ganhou o papel.

Acabou fazendo do canto uma profissão, e por muito tempo se apresentou no Baretto, o bar do hotel Fasano São Paulo. Seu talento chamou a atenção das gravadoras e em 2007 ela foi contratada pela Sony Music. No mesmo ano saiu Amor & Caos, seu disco de estreia, produzido pelo guitarrista Alexandre Fontanetti. O álbum traz qualidades que acompanhariam Ana ao longo de sua carreira. Um híbrido de rock e MPB, em que ela canta cada verso com visceralidade.

O consumo excessivo de álcool sabotou Ana em diversos momentos. A salvação chegou através de Ney Matogrosso, que lhe passou uma carraspana e se ofereceu para dirigir um de seus shows. Ney continua presente na vida da cantora: no DVD dedicado a Belchior, ele faz um dueto com a intérprete em Paralelas. No show realizado em março no Tokyo Marine Hall, em São Paulo, ele também fez dueto com ela em Como Nossos Pais.

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Os últimos anos de vida de Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes foram passados em auto-exílio. Por volta de 2007, ele saiu de casa, deixou o carro no estacionamento do aeroporto de Congonhas e virou uma espécie de nômade. Chegou a ser encontrado por uma repórter do Fantástico – mas sumiu novamente. 

Belchior morreu por conta de um rompimento de aorta na cidade de Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, onde vivia de favor. Era um compositor de talento raro e deixou no mínimo uma obra-prima – o álbum Alucinação (1974). Musicalmente é um trabalho perfeito, no qual os timbres de teclado de José Roberto Bertrami, do trio Azimuth, brincam com o baião (Sujeito de Sorte) e promovem um casamento com a steel guitar em Velha Roupa Colorida

É também o disco que concentra os maiores sucessos de Belchior: além de Velha Roupa Colorida, estão ali Apenas um Rapaz Latino Americano, Como Nossos Pais e A Palo Seco – a regravação do compacto que ele gravou dois anos antes pela gravadora Continental. 

Nas letras, além de um sentimento de inadequação (Belchior nutria uma predileção pelas figuras à margem da sociedade), havia uma espécie de acerto de contas com a geração dos anos 60, que prometia então mudar o mundo. O mesmo disco concentra Sujeito de Sorte, cujos versos “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” serviram como um bordão de resistência na pandemia.

O repertório de Belchior encontra guarida na voz de uma intérprete diferenciada. Ana tem um jeito de cantar rasgado, como se aquelas letras fossem escritas por e para ela – em certos casos, existe uma identificação, como a própria diz em seu show. (Não vamos dar spoiler.) 

As andanças de Ana e Belchior, por vezes erráticas, talvez os tenham impedido de atingir o status que merecem. Mas no final, o que estamos ouvindo e assistindo é um renascimento dos dois.

Pensando bem, como o próprio Belchior cantaria, somos sujeitos de sorte.