Os millennials são muito jovens para saber — e a geração Z sequer tem condições de imaginar — mas antes do sucesso longevo do Plano Real, o Brasil deu inúmeras cabeçadas tantando controlar a inflação.  A mais infame delas foi cortesia do Governo Fernando Collor de Mello, cujo pornográfico “Plano Collor” bloqueou as contas bancárias e limitou os saques a 50 mil cruzados novos.

Até agora, faltava um documentário que recuperasse, com imagens, testemunhos e reconstituição narrativa, o impacto daquele momento. “Confisco”, uma produção da HBO e disponível na HBO Max, cumpre finalmente esse papel e apresenta uma história à altura das tensões vividas naquela época.

O contexto político e econômico do fim dos anos 80 era nada menos que assustador. Mesmo com o fim da ditadura militar e com a promulgação da Constituição de 1988, o País não tinha pacificado uma candidatura para a primeira eleição presidencial desde a década de 1960. Na economia, o brasileiro já estava desenganado com os sucessivos planos econômicos, todos incapazes de controlar um processo hiperinflacionário.

“Confisco” reconstrói essa conjuntura de modo a explicar como e por que a candidatura de Collor, que se apresentava como “o caçador de marajás”, se tornou a grande aposta tanto para os meios de comunicação como para a classe média, estrangulada naquele momento.

Mas o documentário não se baseia somente nas informações técnicas e na rica reconstituição dos eventos políticos da época. “Confisco” se destaca porque vai atrás dos personagens que viveram aquele momento. E é justamente a partir das entrevistas que o filme vai além do relato convencional. De certa forma, o público revive a ascensão e queda do Plano Collor graças aos depoimentos de quem viveu para contar.

A economista Zélia Cardoso de Melo dá a cara a tapa como  a autora intelectual do Plano. Além de registrar sua trajetória até o primeiro escalão da política brasileira, o filme se preocupa em deixar para Zélia a explicação das características do plano econômico em contraponto às imagens da época e à reação dos jornalistas que cobriam o tema. Aqui, é preciso ressaltar o papel da jornalista Lillian Witte Fibe, que, conforme mostra o filme, se estabeleceu como o contraponto que questionava as arbitrariedades do plano. Há espaço, ainda, para o economista Gustavo Loyola, à época no Banco Central. Sua participação, aliás, dá conta de alguém ainda perplexo com as medidas adotadas.

Mas é ao trazer o depoimento de uma família do interior de São Paulo que sofreu com o plano que o público passa a ter a dimensão do tamanho da crise. Ao permitir o saque de até 50 mil cruzados novos, o plano asfixiou inúmeras famílias que tinham na poupança a alternativa de investimento e de proteção para os seus recursos financeiros. Nessa transição, portanto, houve quem tenha se desesperado a ponto de atentar contra a própria vida (Com boa pesquisa de acervos de jornais da época, “Confisco” resgata as notícias de suicídios na época).

Antes com um padrão de vida em ascensão, a família retratada no filme passa a ter de conviver com uma instabilidade financeira crônica. A certa altura do documentário, Zélia (quase) faz uma confissão de culpa: “Coisa de tecnocrata, né?”, ela diz, comentando as consequências inesperadas da decisão de meter a mão na poupança da população.

Vale a pena registrar que o documentário menciona uma hipótese que, pouco aventada na época, mereceria bastante atenção hoje em dia: até que ponto os ataques à ministra não ocorreram por conta de ter sido uma mulher que assumiu ser a cara do plano? Em determinado momento do filme, é a própria Zélia quem afirma que, tivesse como saber, pediria ao presidente Collor que escolhesse um homem para este papel.

Ao fazer uma espécie de ajuste de contas com o passado, o documentário atenta para o fato de que, naquela ocasião, não houve protestos de rua maciços – algo que seria absolutamente natural hoje em dia. Para a ex-ministra, isso tem a ver com a boa fé dos brasileiros, que estão dispostos a fazerem concessão para alcançar determinados ganhos.

O problema se dá justamente quando esses ganhos não aparecem.

As consequências do Plano Collor são conhecidas. Só que ao detalhar o desalento da família paulista, que admite jamais ter se recuperado daquele tombo, o documentário revela o que os registros oficiais são incapazes de contabilizar.

Com alusões à campanha eleitoral de 2018, que levou Bolsonaro à presidência da República, “Confisco”, de Felipe Tomazelli e Ricardo Martensen, pode ser visto como um cautionary tale para aqueles que ainda acreditam em soluções mágicas ou ‘balas de prata’ para estancar a crise econômica.

Fabio Silvestre Cardoso é jornalista e produtor do Podcast Rio Bravo.