Em uma tarde de domingo recente no verão carioca, Isaac Karabtchevsky sai de sua casa na Gávea e se dirige ao Centro, no coração da Lapa. 

Na Sala Cecília Meirelles, um público de diferentes classes sociais se prepara para assistir ao Concerto Especial de Fim de Ano da Orquestra Petrobras Sinfônica. O maestro de grandes multidões entra no palco com um largo sorriso. Às vésperas de completar 90 anos, seu corpo ainda está firme, e as mãos, precisas na manipulação da batuta.

Por quase 90 minutos, Karabtchevsky mistura músicas populares brasileiras como Maria, Maria e Festa do Interior com obras de Tchaikovsky e clássicos natalinos. Vibrando a cada acorde, o maestro cuida de todos os detalhes da orquestra com a ternura de um pai.

Ao fim do concerto, um homem grita da plateia: “Isaac, eu te amo!” O público adere: “Nós te amamos!” Emocionado com o acolhimento, ele encerra a apresentação e é ovacionado de pé. 

Como Tom Jobim, Isaac Karabtchevsky também reinventou a música e sua interação com a audiência, abrindo uma espécie de portal entre a música clássica e as grandes massas. 

Carismático e de técnica apurada, Karabtchevsky não se excede na regência. Seu ouvido absoluto pega  qualquer falha, mas o maestro usa a gentileza como conselheira ao corrigir seus músicos.

Um detalhista à altura de dois maestros que marcaram o século XX – Claudio Abbado e Herbert Von Karajan, ambos da Filarmônica de Berlim – se falhasse como maestro Karabtchevsky provavelmente teria sucesso como CEO de uma grande companhia.

Em 1969, aos 35 anos, ele assumiu a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) como diretor musical e maestro, num tempo em que a orquestra passava por dificuldades. Ficou lá por 22 anos. 

Com o apoio de Octavio Gouvêa de Bulhões – um dos criadores do Banco Central e ex-ministro da Fazenda que comandava a OSB na época – o jovem Isaac melhorou o nível da OSB ao receber permissão (em plena ditadura) para ir à Tchecoslováquia, um país comunista, recrutar talentos para a Orquestra.

Filho de judeus ucranianos, Karabtchevsky se define como “um ex-sionista que defende a causa palestina.”

O pai era comerciante. A mãe, uma cantora lírica, teve influência na escolha de seu ofício. 

“Minha mãe sempre elogiou como fomos acolhidos do Brasil depois de fugir do antissemitismo. O Brasil representou para a nossa família a reconstrução,” diz emocionado.

Karabtchevsky nunca se intimidou em romper com as convenções na história da música. Mesmo sendo alvo de duras críticas, convidou Chico Buarque, Tom Jobim, Gilberto Gil, Vinicius de Moraes, Caetano Veloso e outros para se apresentarem no Theatro Municipal do Rio, acompanhando composições eruditas.

Foi a partir de uma conversa com o amigo e empresário Roberto Marinho, o dono das Organizações Globo, que nasceu o Projeto Aquarius, mais uma tentativa de levar a música erudita às massas. Era o ano de 1972.

O Aquarius foi um sucesso tão grande que chegou a reunir 500 mil pessoas num único espetáculo na Quinta da Boa Vista, zona norte do Rio – o dobro do público que foi ver Madonna em Copacabana este ano. 

Na apresentação de Aída, de Giuseppe Verdi, “o público entrou no lago,” lembra o maestro com a voz pausada e o mesmo entusiasmo do jovem de 22 anos que criou o coral Madrigal Renascentista, em Belo Horizonte, em 1956.

“Quando meu pai e Péricles de Barros conceberam o Projeto Aquarius, Karabtchevsky regeu inúmeros concertos com dedicação extraordinária e capacidade de encantar o público, pouco habituado a ouvir concertos de graça e ao ar livre,” João Roberto Marinho disse ao Brazil Journal. “O Grupo Globo é grato a ele por ter sido nosso parceiro por tanto tempo.” 

Foi quando Karabtchevsky estava à frente da OSB que surgiu sua amizade com Mário Henrique Simonsen. Karabtchevsky lembra com emoção a morte prematura do amigo aos 61 anos, em 1997.

“Ele era um gênio de grande conhecimento musical e voz de barítono. Cantava de cor, sem se impor limites. Seria um grande regente. Aprendi muito com ele. Certa vez regeu a orquestra sem saber a quadratura. Os braços pronunciavam uma tensão muscular. Mario sabia tudo.”

Nesse momento da entrevista, falamos também de outra perda, a de sua filha Ilana, que morreu aos 11 anos vítima de um câncer, o que levou o maestro a ouvir inúmeras vezes Pavane pour une infante défunte, de Ravel.

Quando Simonsen era ministro da Fazenda,  Karabtchevsky e sua mulher, Maria Helena, iam a Brasília para tertúlias com os Simonsen que adentravam a noite. (Iluska Simonsen, a esposa de Mario, era uma enxadrista notável.) 

Em uma dessas ocasiões, o ministro barítono resolve interpretar o protagonista de uma ópera que morre no ato final. Fiel ao libreto, ele, dono de um corpanzil, desabou no chão, como se estivesse morto.

Os seguranças imediatamente invadiram a sala da casa do ministro e apontaram as armas para os Karabtchevsky. 

Simonsen ainda passou alguns longos segundos deitado no chão. Os seguranças achavam que se tratava de um sequestro do influente auxiliar do Presidente Ernesto Geisel. Desfeita a confusão, todos riram muito do episódio – e o ministro continuou a beber seu uísque.

Por quase 26 anos, Karabtchevsky foi maestro de orquestras na França, Itália e Áustria, o que permitiu absorver uma cultura extraordinária. 

Essa jornada começou depois que ele deixou a OSB. Foi convidado pela Osesp para a gravação integral das sinfonias de Villa-Lobos e teve uma passagem pela Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. 

Ele diz que a voz – e a sua experiência no canto, no início da carreira – é “um instrumento perfeito,” que o ensinou a ser um grande maestro. Na prática, os instrumentos de uma orquestra tentam reproduzir os detalhes da voz com suas nuances e peculiaridades.

“Na realidade a voz humana é um misto de instrumentos de sopros e cordas,” resume Simonsen no clássico Ensaios Analíticos, num capítulo que trata de sons e números. Ali ele se utiliza de séries matemáticas para descrever a música erudita, como o terceiro movimento da Nona de Beethoven.

Para o maestro, reger é administrar bem o binômio ‘som e gesto’. “O som provém de uma linguagem abstrata, desenvolvida no tempo; enquanto o gesto projeta essa imagem no espaço,” ele me disse. “Com isso, a regência tem a tensão e a distensão. É como erguer uma pirâmide para delinear os contornos de uma partitura.”

Karabtchevsky também participa do projeto de música erudita de Heliópolis, a maior favela de São Paulo, que abrange seis orquestras, coral e música de câmara, e já formou 1.200 alunos. 

“É uma orquestra de altíssimo nível,” diz o musicólogo Manoel Corrêa do Lago. (Em março, um teatro será inaugurado na favela, e o programa inclui a primeira sinfonia de Mahler.)

“O Roberto Marinho estaria exultante. Quem sabe o Grupo Globo nos apoia para ampliar o projeto?” diz o maestro, abrindo um sorriso.

Leitor voraz dos grandes clássicos do socialismo e da psicanálise (capaz de reproduzir trechos de Lacan em francês), o maestro é uma pessoa doce – mas não leva desaforo para casa. 

Nos anos 1970, convidou o grande pianista húngaro George Cziffra para um concerto no Brasil. O músico trouxe a tiracolo o filho, um regente medíocre.

Lá pelas tantas, o pianista se dirige em francês às 2.100 pessoas no Theatro Municipal do Rio, afirmando que o instrumento estava desafinado e que a culpa era do diretor musical da OSB. Assistindo ao desaforo do húngaro (“este é um país de porcos”) na frisa com Eugênio Gudin, Karabtchevsky simula ir ao banheiro mas vai em direção à coxia – e bate no regente. 

Na comemoração dos seus 90 anos, na próxima sexta-feira, Karabtchevsky vai liderar um mini Projeto Aquarius no centro do Rio, em frente ao Theatro Municipal.

O maestro das multidões ainda não tem data para a aposentadoria.

Coriolano Gatto é editor do estojo “Ópera por Simonsen,” da Editora Insight Comunicação.