Este é o segundo artigo da série “O que é uma vida que vale a pena ser vivida”, em que compartilho conceitos que marcaram minha própria reflexão e que talvez possam inspirar outros a pensar sobre seus caminhos.
“Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo.” – Carl Gustav Jung
Sempre me intrigou o fato de tantas pessoas, por volta dos 40 anos, mudarem de vida de forma radical. Separações, transições de carreira, reviravoltas que de fora parecem inexplicáveis. A tal da crise da meia-idade.
A explicação está no conceito de individuação de Carl Gustav Jung (1875–1961), o psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica.
Jung desenvolveu este conceito como a jornada central do desenvolvimento humano. Para ele, a vida se organiza em duas grandes metades.
A primeira, voltada a responder ao que a sociedade espera de nós: estudar, trabalhar, conquistar estabilidade, casar, ter filhos, ser reconhecido.
Esse movimento é necessário — é o que permite ao “ego” se consolidar e dar ao indivíduo um lugar no mundo. Mas muitas vezes, a identidade que se forma nessa fase é moldada mais pelas expectativas externas do que pela verdadeira individualidade.
Por volta dos 38 a 42 anos, muitos começam a sentir uma inquietação difícil de explicar. Perguntas incômodas surgem: “Será que é só isso mesmo?”, “Quem realmente sou eu, além desses papéis que desempenho?”
É neste momento que muitos rompem padrões: alguns se separam, outros mudam de emprego — ou até de vida. Lembro de um grande amigo que, depois de anos como leiloeiro bem-sucedido, largou tudo para perseguir uma carreira de cantor lírico.
Eu mesmo, depois de mais de duas décadas trabalhando 24/7, vendi minha primeira empresa aos 40, me separei de um relacionamento de 21 anos, comprei um Porsche (que vendi seis meses depois…), tirei um sabático, passei a praticar yoga, fui fazer um retiro espiritual na Índia e comecei a seriamente repensar minha vida.
Foi então que fundei a ONG Parceiros da Educação e iniciei os saraus em casa que, mais tarde, dariam origem à Casa do Saber.
Na época, nunca tinha ouvido falar em individuação. Uma pena, porque se soubesse que existia uma base teórica para o que estava passando, talvez tivesse vivido aquela fase com menos insegurança e mais curiosidade.
Para Jung, esse movimento não é patológico. É, na verdade, a expressão natural do chamado da individualidade — a necessidade de alinhar a vida externa àquilo que realmente somos por dentro.
Se você já passou ou está passando por essa fase, tente vivê-la com mais abertura e consciência. Se ainda não passou, é bem provável que um dia ela chegue até você.
O segredo dessa etapa, segundo o próprio Jung, é o autoconhecimento. Reconhecer as paixões genuínas, os interesses que realmente nos movem, aquilo que ele chamava de caminho para tornar-se “si mesmo”. Trata-se de um processo contínuo: a cada ano o indivíduo deve integrar mais de sua individualidade e depender menos do que a sociedade projeta sobre ele.
Esse mergulho interior se revela, muitas vezes, naquilo que sentimos como flow, descrito por Mihaly Csikszentmihalyi (1934–2021), um dos precursores da psicologia positiva.
O flow nada mais é que aquele estado em que o tempo parece desaparecer porque estamos totalmente imersos em algo que nos conecta ao verdadeiro eu. Identificar momentos assim — de presença, foco e autenticidade — é um caminho transformador para identificar os seus talentos naturais e paixões.
Escrevendo este artigo e refletindo sobre esse período, percebo o meu próprio percurso. Depois do sabático, voltei a empreender nos setores de tecnologia e financeiro, mantendo, em paralelo, um foco parcial e secundário à Casa e à Parceiros.
Só mais recentemente passei a dedicar quase todo o meu tempo à educação — um caminho muito mais próximo do meu flow, para o qual a individuação já me apontava vinte anos atrás. Em outras palavras, meu processo de individuação começou há duas décadas e foi ganhando forma ao longo dos anos seguintes.
Esse deslocamento de foco é um dos ingredientes centrais de uma “vida completa”: viver de acordo com a própria individualidade, maximizar o potencial, dedicar energia ao que dá prazer real e não desperdiçar talentos em batalhas que não correspondem à nossa essência.
Vale registrar que isso não significa abandonar responsabilidades, ignorar demandas externas ou nos tornar menos sensíveis às pessoas que nos cercam — afinal, vivemos em sociedade e, como Homo sapiens, para viver uma vida completa, fortalecer os relacionamentos é essencial.
Significa, porém, encontrar um novo ponto de equilíbrio, em que a vida se torna uma expressão mais fiel de quem realmente somos.
Jung não via a individuação como um caminho de isolamento, mas como um processo de integração. Quanto mais a pessoa se entende e se aceita, mais inteira ela se torna — e mais capaz de se conectar com os outros e contribuir para a sociedade. O propósito, nesse sentido, é o resultado natural de integrar o que somos com o que fazemos. Bonito isso, não?
Jair Ribeiro é empresário, fundador e presidente da Casa do Saber e da Associação Parceiros da Educação. Passou o último ano em Harvard no programa Advanced Leadership Initiative, que apoia empresários a transformarem sua trajetória em projetos de impacto social.
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