Como se cumprisse uma sina, a regulação do mercado de capitais se movimenta de maneira pendular. Medidas de fomento, geralmente por meio de flexibilização de regras, são seguidas por ações mais restritivas, que por sua vez dão lugar a novas medidas de fomento e assim sucessivamente.
Essa dinâmica reflete o aprendizado dos reguladores ao observarem resultados de sua ação sobre o mercado.
Já se disse, com razão, que as principais leis do mercado de capitais foram editadas em resposta a momentos de crise. O caso dos EUA ilustra bem essa afirmativa. A própria autoridade norte-americana, a SEC, foi criada após a Depressão de 1929, na esteira do Securities Act de 1933, que disciplinou a oferta e a negociação de valores mobiliários e deu especial atenção à informação sobre os ativos negociados.
Mais recentemente, atos importantes como as leis Sarbanes-Oxley e Dodd-Frank foram, igualmente, respostas a momentos de crise nos mercados financeiro e de capitais.
Ao contrário do que se observa frequentemente, o debate não deve se resumir a uma escolha binária entre posições mais liberais ou mais restritivas.
Não deveria ser surpresa que nenhuma das duas correntes apresente respostas razoáveis para todos os problemas colocados pela outra. A polarização que já se provou altamente danosa na seara política não haveria de produzir melhores resultados no âmbito da regulação do mercado.
É evidente que os agentes precisam ter liberdade para desenvolver seus produtos e distribuí-los, e que a criatividade e a competitividade são fatores importantes para o desenvolvimento do mercado. Ao mesmo tempo, deve haver mecanismos adequados de proteção do investidor e de garantia de integridade do mercado.
O exercício eficiente do papel do regulador, em sua função normativa, às vezes exigirá soluções mais restritivas, outras pedirá medidas que, na superficialidade do linguajar pedestre, são chamadas “pró-mercado”. As visões de um lado e de outro não são intrinsecamente boas ou ruins. Caberá ao regulador a ingrata tarefa de estabelecer os pontos de equilíbrio.
Essa reflexão, que nada tem de inovadora, me ocorreu recentemente ao ler notícias sobre a volta da discussão, nos EUA, sobre a colocação de limites a operações de venda a descoberto, ou short selling.
Como costuma acontecer quando surgem movimentos pressionando as cotações de companhias, não demoram a aparecer as acusações de manipulação contra quem monta posições “vendidas”.
Após a quebra do Silicon Valley Bank, as atenções logo se voltaram a outros bancos regionais de porte médio, com características semelhantes às do SVB, sobre os quais paira forte desconfiança, explicitada em diversas manifestações públicas sobre os negócios dos bancos. Isso impactou negativamente o preço de negociação de suas ações, o que acabou atraindo interesse em posições vendidas – contribuindo ainda mais para pressionar as cotações.
E foi então que retornou o conhecido debate em torno do short selling, alimentado pelos mesmos argumentos de sempre, mas sem novas propostas concretas de medidas legislativas ou regulatórias que pudessem, ao mesmo tempo, mitigar os problemas apontados e preservar essa modalidade de operação.
É incontroverso que movimentos como esses muitas vezes servem para agravar situações já difíceis por si só, o que, somado ao fato de que quem vende a descoberto aposta na depreciação do valor da companhia, acaba atraindo para essas operações e seus responsáveis uma imagem negativa, como se o conceito fosse inerentemente nocivo.
Novamente usando como exemplo o caso norte-americano, assim foi na crise de 2008, quando a cotação das ações dos bancos sofreu os efeitos diretos da crise, e a formação de posições vendidas serviu como fator adicional de pressão.
Ao mesmo tempo, quando agentes de mercado sofisticados, ao analisar dados (não reservados) de companhias tomam decisões de investimento ou desinvestimento bem fundamentadas, estão contribuindo para mover o preço das ações para um patamar que reflete corretamente a realidade da companhia e as perspectivas de seus negócios. Ou seja, a prática de short selling, como qualquer outra estratégia de negociação, quando bem fundamentada, contribui para a formação de preço adequado.
No calor da crise do subprime (2007-2010), foi imposta uma proibição temporária de vendas a descoberto de centenas de valores mobiliários de companhias do setor financeiro no mercado norte-americano.
Em recente artigo no Financial Times, o economista-chefe da SEC à época, Jim Overdahl, comentou o assunto e lembrou os vários estudos sobre os efeitos das medidas regulatórias tomadas, observando que uma das conclusões foi que a proibição temporária ao short selling, além de não ter produzido o efeito esperado de preservação de empresas do setor financeiro sob desconfiança, contribuiu para reduzir a liquidez, aumentar o intervalo entre preços ofertados para compra e venda e tornar menos eficiente a precificação desses ativos.
A realidade no Brasil é diferente, não apenas pelo fato de haver maior concentração na estrutura de mercado, mas por haver regras que limitam o aluguel de ações a percentuais máximos do total de ações em circulação e por investidor. Pode-se até discutir os limites aplicados, mas, conceitualmente, é uma solução equilibrada.
Certo é que o tratamento regulatório das vendas a descoberto deve tomar por premissa sua neutralidade. Em outras palavras, estamos falando de uma estratégia como tantas outras, que não pode ser questionada sem que se demonstre haver outros elementos de fato que a tornem ilegal, como o uso de informação privilegiada não divulgada ou que seja organizada no contexto de um esquema de manipulação.
A questão, portanto, é definir limites razoáveis para a prática do short selling, e não bani-la. Evidentemente, a discussão sobre que limites estabelecer está longe de ser trivial. Limites bem calibrados permitirão a continuidade da prática e seus efeitos positivos, e mitigarão os riscos de seu abuso, especialmente em momentos de crise.
Porém – e aí o caso brasileiro se afasta do modelo desejável – é fundamental que a supervisão do mercado e suas operações seja feita por autoridade dotada de recursos humanos e orçamentários compatíveis com o porte e a complexidade do mercado sob supervisão. Neste aspecto, a defasagem, já enorme, segue em franco crescimento. E esse problema não há regulação que resolva.
Marcelo Barbosa foi presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e é sócio de Barbosa Sociedade de Advogados.