“O que aconteceu? Como chegamos aqui?”, pergunta o príncipe Harry em um vídeo gravado com o celular no aeroporto de Heathrow, em março de 2020.

É o registro do momento angustioso no qual ele se desvinculou em definitivo de suas obrigações com a Coroa britânica. Harry deixou então o Reino Unido para viver com a mulher, Meghan Markle, primeiro em Vancouver, no Canadá, e depois na Califórnia.

O vídeo abre Harry & Meghan, a muito discutida série documental da Netflix sobre o romance entre o príncipe inglês e a atriz americana. Dá para afirmar que o documentário não existiria sem aquele momento: foi só quando se afastou dos controles e restrições impostos à família real que o casal pôde contar sua história – ou a sua “verdade”, como a dupla famosa gosta de dizer.

harryOs três episódios que a Netflix lançou no dia 8 – outros três estarão disponíveis a partir da quinta-feira, 15 – tentam convencer o espectador de que a tal verdade não diz respeito só aos dois nomes que dão título à série. “Essa história é muito maior do que nós,” diz Harry, sempre modesto.

Não, o conto de fadas do príncipe desencantado e da atriz plebéia não alcança essa dimensão universal. Mas é certo que há um interesse permanente na família real britânica, como já atestou outro sucesso da Netflix, The Crown.

O documentário busca apresentar seus personagens como pessoas simples e acessíveis. Nesse empreendimento, a beleza e a simpatia transbordantes de Harry, 38 anos, e Meghan, 41, ao mesmo tempo ajudam e atrapalham.

Nem o mais cínico dos espectadores duvidará que esse é um casal apaixonado. Harry e Meghan também parecem muito dedicados aos filhos, Archie, de três anos, e Lilibet, de um ano.

Toda essa perfeição, porém, começa a parecer artificiosa depois do quarto ou quinto depoimento de amigos reafirmando o quão inteligente e talentosa Meghan foi em sua carreira (por ora, suspensa) de atriz, e o quão sério e altruísta Harry se mostra em suas campanhas humanitárias.

Não há vozes dissonantes nesse documentário. Houve, é verdade, uma tentativa de buscá-las: um aviso no início do primeiro episódio diz que a família real foi procurada, mas não quis dar entrevistas.

Para quem espera fofocas da corte, aliás, Harry & Meghan revela-se, até aqui, decepcionante. Não se vai muito além da  previsível crítica à formalidade e ao convencionalismo da família real.

meghan markleAinda assim, os monarquistas britânicos mais ardentes irritaram-se com a sequência em que Meghan ridiculariza a obrigação de fazer reverência à rainha. Todas as entrevistas para o documentário foram realizadas antes da morte de Elizabeth II, em setembro, mas a inclusão da cena no documentário pareceu insensível.

O vilão maior de Harry & Meghan é a imprensa sensacionalista. Atriz conhecida pela série Suits, Meghan não chegou a ser objeto do jornalismo de fofoca americano – e não tinha ideia de quão implacável seria o assédio dos tabloides ingleses depois que seu namoro com o príncipe se tornou público. Houve ainda o agravante do tom racista dessa cobertura – Meghan é filha de pai branco e mãe negra.

O período mais dramático foi entre o noivado, em novembro de 2017, e o casamento, em maio do ano seguinte. A meia-irmã de Meghan vendeu histórias escandalosas para os tablóides, e até o pai da atriz colaborou com a imprensa marrom.

Ironicamente, o documentário da Netflix agora fornece mais material para os tabloides. O jornal The Sun, por exemplo, produziu um vídeo com leitores opinando sobre Harry & Meghan. Veredicto geral: ele está amargurado, e ela se faz passar por uma pessoa simples.

Especula-se que a Netflix pagou entre 100 e 150 milhões de dólares ao casal de ouro por um pacote que inclui especiais para crianças, filmes e documentários. Nesse combo, Harry & Meghan representa (o clichê é inescapável) a jóia da coroa. No Reino Unido, mais de dois milhões de pessoas viram a série só no primeiro dia de exibição.

Mesmo afastado da família, Harry ainda mantém o título de duque de Sussex. Na linha de sucessão de seu pai, o rei Charles III, ele está em quinto lugar, depois do irmão mais velho, William, e de três sobrinhos. A carreira de príncipe renegado parece mais promissora.