Por uma decisão política, o Brasil decidiu gastar mais. 

“A questão é como fazer esse ajuste, dado que houve toda essa demanda de gastos adicionais,” disse Tiago Cavalcanti, que acaba de se tornar o primeiro brasileiro a conquistar uma cátedra de Economia em Cambridge.

Nesta conversa com o Brazil Journal, o economista diz que o Governo precisa conquistar a confiança na política fiscal e, para isso, será necessário aumentar receitas e reavaliar despesas, o que vai “mexer com grupos de interesse.” 

Para ele, o essencial é ancorar as expectativas dos agentes do mercado.

“Se ancorar as expectativas, pronto: o dólar cai, ajuda a inflação, e a taxa de juros pode cair.”

Tiago Cavalcanti

Nesta entrevista, Cavalcanti se diz um admirador de Arminio Fraga e Fernando Haddad. “Gosto muito do ministro, como pessoa e como profissional. Admiro mesmo.”

Para o economista, uma das dificuldades do ajuste é que “temos um ministro puxando para uma coisa” e “um Governo, ou quem poderia dar apoio ao ministro, indo contra e criticando.”

Sobre o Banco Central, disse que a atuação “foi na direção correta,” a despeito de discordâncias pontuais, e a instituição tem sido eficiente “do ponto de vista do controle da inflação e da estabilidade financeira.” 

Cavalcanti se formou na Universidade Federal de Pernambuco em 1995. Em seguida fez mestrado e doutorado na Universidade de Illinois. Voltou ao Recife para dar aulas na UFPE, quando, há 17 anos, foi selecionado para uma vaga em Cambridge.

Subiu toda a longa e exigente ladeira acadêmica até alcançar o posto mais elevado na tradicional universidade britânica, cuja escola de Economia foi fundada por Alfred Marshall e por onde já passaram John Maynard Keynes e Joan Robinson, além de premiados com o Nobel como Amartya Sen, Angus Deaton e Oliver Hart.

No Trinity College, em Cambridge, Cavalcanti dá aulas de macroeconomia, desenvolvimento econômico e um curso sobre bancos e crédito. Também é professor part-time da Escola de Economia de São Paulo da FGV.

A seguir, os principais pontos da longa conversa de mais de uma hora, na quinta-feira passada.

A economia brasileira cresceu um pouco acima do esperado nos últimos anos, mas há dúvidas se isso é algo sustentável. Faltam investimentos. Qual a sua avaliação?

O Brasil depende muito da dinâmica internacional – e a conjuntura não é tão boa. Se as taxas de juros do Federal Reserve, do Banco Central Europeu e de outros países começassem a cair, ajudaria o Brasil. Daria uma margem para o Banco Central reduzir os juros.

Acabaram de sair os números de inflação no Reino Unido, e eles estão exatamente na meta de 2%. Mas quando olhamos os indicadores de núcleo, ainda estão todos acima. Existe uma expectativa de corte na reunião de agosto, mas a probabilidade é de menos de 25%.

Nos EUA a probabilidade de redução é ainda menor. O mercado de trabalho está bem mais aquecido do que no Reino Unido.

Então o Brasil não vai contar com essa folga, que poderia vir da redução dos juros internacionais.

O Brasil fez reformas importantes nos anos 90, na primeira gestão do governo Lula e em outras gestões também. Mas o País sempre acompanhou uma dinâmica internacional, depende muito de como as commodities se comportam.

A queda da taxa de juros vai demorar um pouco para acontecer – devido também ao processo eleitoral nos EUA, aqui no Reino Unido, na França…

Há várias incertezas, fica difícil prever. Será um período um pouco mais difícil para o Brasil.

Internamente, o Brasil tem muito potencial com o agronegócio, com o meio ambiente. Se o País conseguisse atrair investimentos a partir do seu capital natural, poderia ser uma estratégia de desenvolvimento.

Mas quando pensamos em produtividade, educação é sempre algo importante.

Falando sobre esse assunto, é interessante o trabalho que você orientou, avaliando a qualidade de educação em colégios do Rio de Janeiro. Mostra como é possível fazer mais com os recursos disponíveis. Precisamos aumentar a produtividade do setor público?

A ideia desse trabalho de doutorado, que o Felipe Puccioni vai defender no início de julho, foi justamente essa. Com a estrutura existente no município do Rio de Janeiro, com o mesmo pessoal, com o mesmo recurso, será que conseguimos ter resultados melhores dos alunos se tivermos uma melhora na gestão?

Então fizemos o experimento, selecionamos escolas aleatoriamente, e aí fizemos um treinamento. Colocamos os dados dos alunos em uma planilha. Quando acendia uma alerta, aparecia um vermelho na coluna, o diretor conversava com o professor para saber o que estava acontecendo, as razões da queda no desempenho.

Então não teve a contribuição de nenhuma organização externa? Foram usados apenas recursos do estado e a estrutura de pessoal existente?

Isso, exatamente. Participaram funcionários da Secretaria de Educação do município do Rio de Janeiro e do Tribunal de Contas do município do Rio de Janeiro.

Os resultados mostram que nessas escolas em que os alunos receberam esse treinamento, basicamente em dois anos os alunos aprenderam o que nas outras escolas, sem o treinamento, foram necessários três anos em média.

Estamos falando inclusive de escolas de difícil acesso, até por conta da questão do crime, em que os professores têm bastante dificuldade, mas conseguimos fazer essas intervenções.

Há funcionários altamente qualificados, porque precisam passar por concursos públicos bem disputados, então vão saber matemática, vão saber português, vão ter um curso superior em administração, em economia, em direito. São pessoas com capacidade de aprender e passar para os diretores e os professores o que foi ensinado.

É um experimento que mostra que é possível você fazer mais com os recursos existentes.

Quando olhamos para os números no Rio de Janeiro, a gente vê um aumento nos gastos por aluno, um aumento nos gastos por escola, você vê inclusive relativamente a outros municípios do próprio Estado, mas também do Brasil, e você não vê uma melhora proporcional.

Então, por que não também falar da produtividade dos gastos? Por que não falar no desenho das instituições no Brasil?

Você tem pesquisado bastante a questão dos juros no Brasil, particularmente o spread bancário. Como vê a atuação do Banco Central?

A atuação do Banco Central, de forma geral, olhando os resultados, tem sido eficiente do ponto de vista do controle da inflação e da estabilidade financeira.

A inflação, a gente sabe, tem efeitos perversos na economia. É também algo muito regressivo. Então precisamos evitar um processo inflacionário, até para dar mais previsibilidade para os investimentos.

Talvez a taxa de juros poderia ter sido meio ponto percentual menor, podemos discordar do nível, mas acho que o processo como um todo tem sido eficiente.

Além disso, o BC implementou várias reformas importantes: o Pix, a portabilidade de crédito, a portabilidade de salário. Houve também a mudança da TJLP, não necessariamente feita pelo Banco Central, mas que afetou o mercado de crédito no Brasil. Teve o cadastro positivo.

Então foram várias reformas. Mas quando a gente compara o Brasil com países como Colômbia e México, o spread bancário no Brasil é da ordem de 10 vezes maior.

Entraram novos bancos, as fintechs. O Nubank é um bom exemplo, entrou em 2014. Em 10 anos tem 14% do mercado de cartão de crédito no País, tendo como alvo pessoas que não estavam bancarizadas.

Não podemos dizer que essas políticas não tiveram efeito, mas não foram efeitos substanciais para sair de um equilíbrio em que o crédito pessoal cobra 150% de juros para um equilíbrio em que os juros caíssem, vamos dizer, para 50% ou alguma coisa assim, ou para um nível como o do consignado, em torno de 30% a 40%.

Tem um poder de mercado dos bancos que a gente não pode negar. De repente você tem uma questão de educação financeira, as pessoas não percebem o efeito de longo prazo nos seus gastos. Passa por uma questão de finanças comportamentais.

O Pix foi muito importante para bancarizar as pessoas que poderiam ter acesso ao sistema financeiro, mas ao mesmo tempo que as pessoas pudessem escolher mais onde colocar o dinheiro.

Então, a atuação do BC, em várias medidas, foi na direção correta, tanto do ponto de vista macro como micro.

Houve reformas importantes também no início do primeiro Governo Lula, nas garantias para os financiamentos de imóveis e automóveis, além do consignado.

Sim. Nas linhas com garantias os juros são mais baixos. Claramente a inadimplência e a parte institucional de segurança jurídica são fundamentais. Aí a questão que fica é responder quanto do spread é explicado por um mercado que não é competitivo e como melhorar.

E existe a cunha fiscal e os compulsórios.

Sim, muito elevados. E há o crédito direcionado. Se você direciona para um lado diminui a oferta de outro. É uma questão de aula de introdução à Economia – diminui a oferta, aumenta o preço.

O que leva a uma seleção adversa, não?

Exatamente. Quando a taxa de juros é mais alta, você atrai exatamente pessoas com maior probabilidade de inadimplência.

Se a gente conseguisse diminuir os juros lá na ponta para as pessoas e para as empresas, o efeito na economia seria bastante elevado – na produtividade, no bem-estar. Poderia ser um low-hanging fruit para o Brasil.

Se os juros caíssem a níveis de México, a níveis de Colômbia, teria um efeito impressionante nos investimentos. Já vimos algo parecido nos anos 2000, com a alienação fiduciária e a Lei de Falências.

Em diversos aspectos, a economia brasileira está hoje em uma situação bem mais favorável do que há 20 anos, no primeiro mandato de Lula. O Governo, naquele período, fez um forte ajuste. Qual a dificuldade de fazer algo parecido agora? É uma questão política?

Havia um ambiente político para fazer aquilo.

Tivemos então um período de crescimento e inclusão, um crescimento muito bonito, a economia melhorou e tivemos uma classe social que foi integrada ao mercado de trabalho, integrada ao mercado de consumo.

Acho que estamos em um momento de repetir um pouco isso, mas é necessário apoio político. Então precisamos determinar metas, e as metas fiscais devem ancorar as expectativas.

Vimos o exemplo do Reino Unido, com a Liz Truss (em setembro de de 2022, o plano da então premiê britânica de reduzir impostos provocou uma crise de desconfiança na política fiscal, desvalorizando os títulos do Tesouro).

Veja como as expectativas são importantes. Era o mesmo país, situação idêntica. Os juros eram iguais, tudo era igual. Só foi a mudança na expectativa.

Para ancorar a expectativa, a comunicação é importante. Há outras experiências, como a mudança no Banco Central da Turquia. A inflação foi lá para cima.

No Brasil, um trabalho recente do Marco Bonomo e outros autores fala do cavalo de pau do Tombini, como aquilo desancorou as expectativas e tornou a difícil a política monetária.

Muito de política monetária, aprendemos recentemente, é uma questão de comunicação do Banco Central.

Quando a gente olha a atuação do Arminio Fraga, introduzindo a meta de inflação, parece algo óbvio hoje em dia – mas na época não era. É um mega crédito para o Arminio ter conseguido fazer aquilo, naquele ambiente.

Tenho muita admiração pelo Arminio, tanto em termos intelectuais como também pela atuação dele.

O Ricardo Reis, que é um economista da LSE (London School of Economics), tem vários estudos sobre inflação e analisou esse pico que houve no Reino Unido. Uma coisa interessante é que mesmo quando a inflação estava lá em cima, em 10%, a expectativa de um ano e pouco estava ancorada em 2%.

Ou seja, apesar de todas as mudanças por causa dos incentivos de demanda, havia a expectativa de que o Banco Central iria atuar para fazer a inflação baixar para a meta. E realmente aconteceu.

Ancorar tanto as expectativas de inflação quanto da âncora fiscal depende muito da política e da comunicação. Não é fácil. Pensa no ambiente que o nosso ministro [Fernando Haddad] está vivendo, uma guerra de todos os lados.

Tanto a política fiscal como a política monetária estão sendo questionadas no Brasil. Há desconfiança em relação ao cumprimento de ambas as metas. E começou a haver uma reação à maneira escolhida pela equipe econômica para recompor receitas. É algo que inibe os investimentos. Qual sua opinião? A tributação bateu no teto? Não existe outro caminho?

A gente decidiu gastar mais. É uma questão política, não é uma questão do ministro.

Podemos até discordar se isso é uma decisão certa ou errada dentro do ambiente que o Brasil vive. A questão é como fazer esse ajuste, dado que houve toda essa demanda de gastos adicionais.

Para mim, não resta dúvida de que precisa aumentar a receita. E como é que aumenta?

Aí, realmente, vai mexer com grupos de interesse. Acho que é importante uma comunicação do ambiente fiscal, da necessidade que a gente tem de arrecadar mais dado as decisões que foram tomadas.

Pode ser um momento também em que a gente possa tentar ajustar alguns tipos de gastos no País, mas acho também que o Brasil tem espaço para aumentar a tributação.

Podem falar que a tributação no Brasil é elevada – e é elevada –, mas, por outro lado, o Imposto de Renda no Brasil é muito baixo. Tem várias deduções. A alíquota média efetiva fica ali, se muito, em 20%. E há as desonerações em quase todos os setores.

Admiro muito o Fernando, mas isso não quer dizer que não possa haver uma mudança na comunicação, tanto do ponto de vista do ministro como do ponto de vista do Governo, de apoiar a atuação do ministro. Porque temos um ministro puxando para uma coisa, e você tem um Governo, ou quem poderia dar apoio ao ministro, indo contra e criticando.

Então acho que realmente essa é uma grande diferença do Lula hoje com o Lula lá de trás.

Se o nível de gastos não vai cair, vale a pena mexer na composição deles? Debater, por exemplo, as vinculações com o salário mínimo e os pisos constitucionais para educação e saúde?

Acho que deveria pensar em tudo. Pensar em tudo mesmo, em todas as questões que pudessem mudar a estrutura e a dinâmica da dívida do Brasil.

O que é a taxa de juros? A taxa de juros é um preço. É a demanda e oferta de títulos. Tudo bem, o Banco Central pode mudar essa demanda e oferta porque o BC não tem um balance sheet constraint, pode imprimir moeda. Mas é um preço.

Se você está precisando financiar mais o gasto, você vai, de certa forma, aumentar a oferta de títulos. Se você aumentar a oferta de títulos, você vai diminuir o preço. Então não tem como fazer, você vai aumentar a taxa de juros. Então é um preço ali.

Pensar nisso é muito importante.

Então, onde é que você poderia diminuir o gasto? Quais são as vinculações que a gente poderia cortar? Todas essas mudanças marginais são importantes, contribuem no agregado.

Se ancorar as expectativas, pronto. O dólar cai, ajuda a inflação, e a taxa de juros pode cair. Então, tem que pensar tudo isso. Volta para a questão da expectativa.

Você contribuiu com propostas para a campanha de Eduardo Campos, depois com a campanha da Marina. Sei de sua proximidade com o ministro Haddad. Aceitaria um convite para contribuir no Governo?

Fiz economia para contribuir. Em um momento da minha vida, era muito difícil fazer isso por questões familiares. Hoje essas questões estão menos restritivas. Penso, sim, penso em contribuir.

Gosto muito do ministro, como pessoa e como profissional. Admiro mesmo. Quem sabe, né?