Na manhã daquele 12 de setembro de 2001, com todos os voos comerciais suspensos, o velho jato da Força Aérea americana era o único meio de transporte para que Alan Greenspan retornasse com segurança de um encontro de banqueiros centrais na Suíça para Nova York.

O sujeito comprido, magro, com enormes óculos redondos na cara, não podia acreditar no que havia acontecido nas últimas 24 horas: o ataque às Torres Gêmeas ameaçava instalar o caos nos mercados, e as informações de mais de US$ 170 bilhões em transações na Bolsa haviam sido perdidas graças aos danos na infraestrutura causados pelo ataque. O escritório de sua antiga firma de consultoria, a Townsend-Greenspan & Company, era bastante próximo do World Trade Center.

Ao longo dos próximos dias, Greenspan lançaria mão de toda a artilharia do Fed, garantindo que o sistema financeiro americano — e por consequência o global — não acabasse como as torres.

10359 18baed3c 58fd 0000 0000 db22478e7d6bA história acima é uma das anedotas contadas por Sebastian Mallaby, no longo mas necessário The Man Who Knew – The Life And Times of Alan Greenspan (800 páginas, US$ 27 na Amazon), publicado no ano passado pela Penguin Press e ainda sem tradução no Brasil.

Trata-se de um livro profundo que esquadrinha a vida de um dos homens mais interessantes da história econômica recente. Após 18 anos como Mr. Chairman (1987-2006), Greenspan saiu no auge. 

Porém, dois anos depois, com a eclosão da crise armagedônica de 2008, seu legado foi posto em cheque, e um dos heróis da economia americana se tornou um de seus maiores vilões. 

Para seu biógrafo, este julgamento foi parcial e errado.  Mallaby diz ser preciso analisar a figura de Greenspan num contexto bem mais amplo, que vai do final da Segunda Guerra até os dias de hoje. 

Nascido em 1926 e criado por uma mãe solteira, o ex-músico profissional de jazz se tornou um consultor de sucesso, chefiou o National Economic Council (conselho de economistas que assessoram o Presidente dos EUA) e coroou sua carreira no Federal Reserve com cinco mandatos consecutivos, de Ronald Reagan até a metade do segundo mandato de George W. Bush. 

Greenspan foi um dos responsáveis por um dos períodos mais longos de prosperidade americana do pós-guerra. 

A ‘era Greenspan’ coincide com o que Ben Bernanke, seu sucessor no Fed, classificou como ‘a grande moderação’, um período em que a volatilidade do PIB e da inflação se reduziram substancialmente após os turbulentos anos 80. 

A economia americana passou a operar com ciclos menores, as recessões se tornaram curtas e rápidas, e o crescimento se manteve consistente na maior parte do tempo, enquanto a inflação se mantinha baixa. Ou seja: uma era dourada.

Greenspan tinha um estilo único de fazer política monetária: era um mestre na manipulação dos demais membros do FOMC, o comitê que decide a taxa de juros americana. O dissenso era comum nas reuniões do FOMC, mas Greenspan sabia conduzir a situação e fazer com que sua opinião prevalecesse.

O chairman sempre começava uma reunião dando sua visão sobre qual deveria ser o nível da taxa de juros e a situação da economia. Permitia que a discussão acontecesse apenas após a sua análise. Para Mallaby, essa era uma forma de ‘guiar’ ou até mesmo intimidar as demais opiniões. 

Foi essa maestria em conduzir as reuniões — e assim levar a economia para a direção que acreditava ser a melhor — que rendeu a Greenspan a alcunha de ‘Maestro’, que também se tornou o título de sua outra biografia, escrita por Bob Woodward há 17 anos. 

(Assim que assumiu, Bernanke inverteu a ordem das reuniões, de forma a deixá-las mais abertas a discussões.) 

Greenspan dava muito mais peso à própria intuição e à leitura dos dados de diversos setores da economia do que aos complexos modelos desenvolvidos pelas centenas de economistas da divisão de pesquisa do Fed. 

Olhar os dados, sem modelos, foi um hábito que adquiriu na Townsend-Greenspan e que o tornou um consultor valioso. Os insights de Greenspan não eram replicáveis por modelos; apenas ele entendia como processar e interpretar os dados. 

***

Porém, sua maestria em fazer política monetária não se refletia na esfera da regulação financeira. Para Greenspan, era melhor deixar os mercados funcionando de forma mais livre, limitando a intervenção do Fed apenas a momentos de crise.

Crise após crise, Greenspan agia estabilizando os mercados: do crash de 1987, passando pelas crises asiática, russa, à quebra do LTCM e a bolha da internet.

O receituário adotado por chairman, durante 18 anos, foi sempre socorrer — quase nunca regular. Para o maestro, a orquestra dos mercados financeiros não precisava ser regida.

O mercado conhecia seu modus operandi, e os operadores até criaram uma expressão: a ‘Greenspan put’ significava que, se algo ruim acontecesse com os mercados, Alan Greenspan estaria lá para salvá-los.

Armínio Fraga, ex-presidente do BC brasileiro, se recorda de seu primeiro contato com Greenspan — e uma conversa sobre regulação. 

“Na conversa, perguntei sobre supervisão bancária,” diz Armínio. “Ele me disse que acreditava em três níveis: o tradicional, com inspeções in loco, o indireto, com dados de qualidade, e o do próprio mercado, com cada contraparte monitorando a outra.”

Mas a capacidade de automonitoramento se mostrou uma falácia. 

O Fed e as demais instituições de fiscalização bancária não tinham recursos suficientes, e o próprio Greenspan confessou, mais tarde, que precisaria de cinco vezes mais funcionários para desimcumbir-se adequadamente da tarefa.

Para piorar as coisas, os dados do setor financeiro pouco revelavam os enormes riscos que estavam sendo tomados por Wall Street.

Greenspan deixou de agir várias vezes quando teve a chance de aumentar a regulação sobre os mercados, e, mais tarde, a História não o perdoaria.

Nos anos 90, ajudou a engavetar uma reforma sobre derivativos exóticos. A reforma traria enorme transparência e garantias a essas operações, que haviam se tornado um money machine em bancos como a Lehman Brothers e a Bear Sterns.

E foram exatamente os derivativos o epicentro do terremoto de 2008. Tanto a Lehman quanto a Bear famosamente quebraram quando não conseguiram absorver as perdas geradas pelos derivativos. 

Segundo Mallaby, o grande erro de Greenspan foi ter colocado proteções demais sobre os mercados e acreditado demasiadamente no automonitoramento dos riscos. 

Mas jogar toda a culpa sobre o chairman seria uma injustiça com uma biografia brilhante, até porque parte considerável da regulação não dependia apenas da tecnocracia do Fed, diz o autor. 

Mallaby diz que, em momentos de pânico e comoção como 2008, o mundo precisa de bodes expiatórios, e ninguém cabia melhor neste papel do que Greenspan.

A análise final caberá à História.