O cientista político e empreendedor social americano Gary Carrier desembarcou no Galeão três anos atrás com 12 notebooks na bagagem e uma ideia na cabeça: transformar jovens da Rocinha em profissionais da tecnologia da informação. 

“Fiquei imaginando que naquela comunidade de 150 mil pessoas, cheia de gente criativa e com garra, seria possível encontrar 50 jovens com vontade de correr atrás e se dedicar para mudar de vida,” Gary disse ao Brazil Journal

O projeto vingou – e está ganhando escala. 

ONG com DNA de startup, a Plataforma já capacitou mais de 330 alunos, que hoje ganham cinco vezes ou mais aquilo que antes recebiam como motoboys e entregadores de aplicativo. 

Nascido em Seattle numa família de origem pobre, Gary se envolveu desde cedo em projetos comunitários e de impacto social. Na Rocinha, viu a oportunidade de criar um projeto que pudesse acelerar a transformação social das famílias. 

Gary CarrierA ligação do americano de 37 anos com uma das maiores favelas do País começou há quase 15 anos, quando ele concluiu a faculdade de Ciências Políticas. 

Em 2009, era mais um recém-formado com dificuldades para se colocar no mercado, em meio à tormenta econômica causada pela crise financeira global. Decidido a passar um período na América Latina, comprou um bilhete para o México. Só de ida. 

Viveu por lá dando aulas de inglês e se envolveu em trabalhos comunitários e de inclusão social, algo que já fazia desde a juventude em Seattle. 

Rodou pela América Central e chegou à Colômbia, já com planos de ficar uns tempos no Brasil na sequência – e com a ideia de morar em uma comunidade carente. “Queria trabalhar numa favela.” 

Gary estudou um pouco de português nos anos de faculdade, mas sua ligação com o Brasil começou indiretamente um pouco antes, vendendo açaí e derivados pela internet. 

Veio à Rocinha em 2011, para trabalhar em uma ONG local que precisava de professores de inglês. 

“O irmão do diretor do instituto era taxista, foi me buscar no Galeão,” relembra Gary. “Estava chovendo para caramba. Quando começamos a subir na Rocinha, pensei: ‘O que foi que eu fiz?’.” 

Morou na casa de uma família do Ceará. Era tempo de guerra do tráfico e conflito com a polícia. 

Uma de suas primeiras lições de sobrevivência foi deitar-se no chão, abaixo da janela, sempre que houvesse qualquer sinal de tiroteio. “A realidade ali é surreal.” 

Outra foi aprender a lidar com os traficantes.

Um dia, quando subia a comunidade, foi barrado por dois homens com fuzis. Queriam saber se era um playboy perdido ou policial. 

“Falei que era americano e estava dando aulas de inglês para crianças,” conta Gary. “Aí me disseram: ‘É gringo? Então está liberado. Se veio para ajudar a comunidade, seja bem-vindo’.” 

Imaginou que ficaria alguns meses, e acabou ficando mais de um ano. Ganhava dinheiro dando aulas particulares de inglês para alunos da PUC. 

Nesse período, ajudou a fundar uma creche e outras iniciativas sociais na Rocinha. Estava feliz com o que estava fazendo, mas sempre se perguntava como poderia alavancar o potencial dos projetos. 

Decidiu fazer uma pós-graduação em Berkeley, e seu primeiro emprego ao voltar aos EUA foi em uma empresa de microcrédito focada em impacto social.  

Gary já havia trabalhado como recrutador de profissionais de TI para empresas do Vale do Silício. A falta de mão de obra e o alto custo de trabalhadores na Califórnia fez as empresas procurar talentos ao redor do mundo que pudessem trabalhar remotamente. 

“Então pensei, ‘Caraca, será que a gente consegue capacitar os jovens da Rocinha para eles fazerem carreira em TI?’,” diz Gary. 

Em 2021, nasceu a Plataforma. 

Gary conta que, depois de ter vivido na comunidade, conhecia o potencial empreendedor e criativo dos moradores, mas a grande maioria das pessoas acaba se engajando em atividades pouco escaláveis ou em profissões nas quais a ascensão social é extremamente lenta. 

Para os jovens mais ambiciosos – e que não caíram no crime – as maiores chances de mudar de vida da noite para o dia costumam estar no futebol ou no funk. “Mas só uma pequena minoria ganha dinheiro assim,” diz Gary. 

Por meio de seus cursos técnicos e mentorias, a Plataforma abre uma nova fronteira de possibilidades para as meninas e meninos não só da Rocinha mas também de outras comunidades do Rio. 

Os interessados passam por testes de seleção e entrevistas. Vencida essa etapa, são seis meses de treinamento, já tendo em vista a colocação em estágios remunerados.  

Com a ajuda de empresários que fazem a ponte com recrutadores, há hoje ex-alunos da Plataforma trabalhando em startups de brasileiros no exterior e ocupando funções sêniores na área de TI de instituições financeiras. 

“É uma maneira muito rápida de quebrar o ciclo da pobreza,” afirma Gary. “Um menino foi contratado por uma empresa da Flórida como júnior, e dois anos depois já era engenheiro.” 

Para funcionar, o programa faz um funil rigoroso. Não dá mole para os alunos. Entre os selecionados, metade não progride depois de um curso inicial de três meses.  

Para os que persistem, a mentoria ajuda bastante no futuro profissional – inclusive para driblar a barreira da falta de inglês porque, mesmo trabalhando para empresas estrangeiras, os formados acabam ficando sob a orientação inicial de um brasileiro. 

“Nossa mensagem para os alunos é que, se eles aguentarem e se dedicarem, os frutos virão com certeza,” diz Gary. “Mas precisa estudar.” 

A Plataforma mede o seu sucesso pela inserção dos alunos, e não pela quantidade de formados.

Entre os parceiros estão a Oracle e a Alura, a maior plataforma de ensino de programação da América Latina e responsável por fornecer o conteúdo do curso. 

A Plataforma foi criada na Rocinha, mas sua sede legal fica nos EUA. A Ballmer Family Foundation foi a primeira entidade a colocar dinheiro no projeto. Agora a Plataforma conta também com apoio e mentoria de grandes empresas. 

Guilherme Pacheco“O Gary nos mostrou como a combinação da qualificação técnica com a imensa vontade de aprender dos participantes pode superar barreiras e criar profissionais de TI bem-sucedidos,” diz Guilherme Pacheco, o empreendedor em tecnologia que co-fundou o Bondfaro e a Mosaico (comprada pelo Banco Pan) e apoia a Plataforma. 

Assim como Gary, Guilherme acredita que a mentoria é essencial para transformar de fato o futuro dos jovens. 

“Uma vez rompido o ciclo da pobreza, o conhecimento e o network adquirido pelos profissionais dificultam os retrocessos,” diz Guilherme. “A solidariedade retroalimenta um círculo virtuoso: aqueles que alcançaram sucesso ajudam na formação e colocação dos novos profissionais.” 

O orçamento anual da Plataforma é de US$ 120 mil. Aproximadamente 70% dos fundos doados vêm de instituições e empresas dos EUA; os 30% restantes são originados no Brasil. 

Gary busca maneiras de crescer, escalar o projeto e não depender só de doações. 

Recentemente, criou um braço com fins lucrativos em que vão trabalhar e estagiar alguns dos melhores alunos do curso. Parte da renda será destinada para manter o projeto social.  

No Substack, Gary publica periodicamente newsletters em que fala sobre a trajetória da Plataforma e presta contas sobre os resultados. 

Em um texto de novembro, ele conta a história de Matheus, um garoto que trabalhava como mototáxi quando entrou no curso, em maio de 2022. Hoje ele desenvolve software para uma empresa dos EUA.    

Matheus enviou a Gary fotos da primeira viagem internacional que fez com a família. O ex-aluno da Plataforma levou o pai para realizar o sonho de ver neve pela primeira vez. 

“Gary, obrigado pela oportunidade que a Plataforma nos ofereceu,” escreveu Matheus. “Você não tem ideia de como eu sou grato.” 

 

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