O que fazer diante da dor e do sofrimento de uma guerra?

Como não sucumbir ao trauma e se revoltar, destruindo o entorno ou se autodestruindo? É possível, ainda assim, buscar o bem, a justiça e criar o belo?

O artista e ativista ambiental Frans Krajcberg deixou um testemunho e um legado únicos, dentro das várias vidas que viveu em seus 96 anos.

frans krajcbergNascido em 1921 em uma família judia no interior da Polônia, Krajcberg sobreviveu aos horrores da Segunda Guerra Mundial. Presenciou sua mãe, dirigente do partido comunista polonês, ser enforcada pelo exército nazista.

Perdeu os irmãos, pai e toda família em campos de concentração. Ele mesmo foi prisioneiro dos alemães, mas conseguiu escapar para o lado soviético, onde lutou primeiro no exército russo, depois na resistência polonesa e no exército polonês. Foi paraquedista e sobreviveu a duas bombas que explodiram perto de seu corpo. Ganhou diversas medalhas por bravura – uma delas teria sido entregue pelo próprio Stálin.

Quando morava na antiga URSS, Krajcberg começou a estudar engenharia e artes em Leningrado. Ajudou os russos a construir pontes por um curto espaço de tempo antes de retornar ao front  – e continuou os estudos em Stuttgart, na Alemanha, no pós-guerra (curioso ter ido morar justamente na Alemanha depois de tudo).

Lá estudou a Bauhaus e os grandes movimentos da arte moderna. Willi Baumeister, artista alemão e seu professor, o aconselhou a encontrar Fernand Léger em Paris. Como não falava francês, Krajcberg se aproximou do artista russo Marc Chagall, com quem acabou morando por meses. Uma noite, um amigo de Chagall ofereceu a Krajcberg uma viagem ao Brasil, que ele nem sabia ao certo onde ficava.

Em uma entrevista a Mario Sergio Conti, Krajcberg contou:

“Cheguei ao Rio. Sem dinheiro, sem falar português, sem conhecer ninguém. Dormia na praia de Botafogo. Não aguentava a miséria. Fui para São Paulo de trem, clandestino. Em São Paulo, fui ao Museu de Arte Moderna. Cicillo Matarazzo foi maravilhoso: me deu trabalho. Eu fazia tudo, até varria o museu. Conheci Mario Zanini, que me levou para trabalhar numa empresa de azulejos. Pintei azulejos, inclusive alguns do painel do Portinari para o prédio do Ministério da Educação. (…) Aí veio a primeira Bienal, a de 1951, e ajudei a apresentar as obras para o júri. Eu tinha cinco quadros. Dois deles foram selecionados para a Bienal. Eram quadros expressionistas.”

Depois da Bienal, foi trabalhar como engenheiro e desenhista em uma indústria de papel no Paraná. Lá pensou em beber muito até morrer, foi ficando magro e doente até ser hospitalizado.

Em recuperação, ficou em contato com a natureza brasileira e ali encontrou um novo sentido para viver. “Nunca a natureza me perguntou de onde eu vinha, se era naturalizado, qual a minha religião. Isso me deu grande alegria. Comecei a desenhar plantas e pintava ladrilhos,” disse na mesma entrevista.

Acabou conhecendo muitos artistas do eixo Rio-São Paulo, como Volpi, Waldemar Cordeiro, Sergio Camargo, Franz Weissmann.

Depois de uma temporada em Paris e em Ibiza, resolveu se instalar definitivamente em Nova Viçosa, no sul da Bahia, nos anos 70. Lá descobriu o mangue, se apaixonou por seu movimento, textura, densidade, a infiltração das luzes por meio das tramas de galhos e os caranguejos coloridos.

A vivência na floresta o fez perceber que não deveria apenas trabalhar com a natureza: era preciso defendê-la.

Como já não podia pintar em função de uma intoxicação por tinta a óleo, passou a viajar e capturar as imagens de árvores carbonizadas. Os restos de troncos de florestas desmatadas e raízes carbonizados por queimadas da Amazônia, de Mato Grosso ou da Mata Atlântica baiana se transformaram em esculturas e pigmentos naturais derivados de terras e minerais em suas tintas.

“Meu trabalho às vezes chega ao estético, mas sem querer. Não é todo dia que eu consigo fazer um trabalho que grite alto, como eu gostaria. Às vezes ele cai um pouquinho no estético, sem que eu tenha intenção,” dizia o artista.

Hoje, mais de 160 obras, grande parte vinda do acervo do artista, podem ser vistas na exposição Frans Krajcberg: por uma arquitetura da natureza, no Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia – MUBE, em São Paulo, até 11 de setembro. A mostra é uma parceria com o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), com curadoria de Diego Matos.

A exposição marca também o início da cooperação do MUBE com a preservação do acervo de 48 mil itens e do Sítio Natura, em Nova Viçosa, doados pelo artista ao Governo da Bahia.

Há duas semanas, os jornais noticiaram que a Prefeitura de Nova Viçosa demoliu uma casa do artista — mais um exemplo, dentre tantos, do desrespeito com nossa memória e história.

Krajcberg rejeitava o título de artista e não buscava a estética como fim. Seus traumas foram catalisadores de uma busca pela vida que somente encontrou sentido na natureza.  “Essa palavra ‘artista’, querendo significar ‘super-homem’, não vai bem comigo. A arte foi um meio de sobreviver.”