O filósofo Jean-Paul Sartre e sua maravilhosa companheira Simone de Beauvoir estiveram no Brasil em 1960, no auge de suas carreiras, a convite de Jorge Amado e Zélia Gattai. O casal francês permaneceu no Brasil por quase dois meses em um “roadshow”, como dizemos no mercado, que percorreu diversas cidades no Norte, Nordeste e Sudeste.
Naquele mundo polarizado pela Guerra Fria, pouco depois da revolução em Cuba, onde ele também havia estado meses antes, e no auge da guerra do Vietnã, Sartre e Simone encontraram um Brasil ainda pobre, porém cheio de esperança. Com uma capital recém-inaugurada e sob a liderança de Juscelino Kubitschek, o Brasil dava sinais de modernização, sustentada por uma forte industrialização, ao mesmo tempo que buscava promover o desenvolvimento do interior e a sua integração regional.
Durante o mandato de JK, o país viveu um período de notável desenvolvimento econômico e relativa estabilidade política. No entanto, houve um aumento da dívida pública interna e da dívida externa, que se perpetuou nos governos seguintes. Segundo alguns críticos, seu mandato terminou com aceleração da inflação, aumento da concentração de renda e arrocho salarial, também uma caraterística do Brasil que se seguiu. Foram os famosos “50 anos em 5” que, ironicamente, nos levavam ao nosso debate existencialista em busca de uma nação moderna e próspera. Foram os nossos “anos dourados” e o início da década da contracultura, do feminismo, dos movimentos estudantis, da Tropicália, dos festivais de música e de uma grande ebulição sociocultural.
Nessa época, Sartre talvez estivesse no período mais prolífico de sua carreira. Já havia assumido uma postura política mais atuante e abraçara o comunismo. Tornara-se ativista e posicionava-se publicamente em defesa da libertação da Argélia do colonialismo francês. Como filósofo existencialista, Sartre dizia: “somos inteiramente responsáveis por nosso passado, nosso presente e nosso futuro”. Como ateu, defendia que não havia a existência de um Deus que pudesse justificar os acontecimentos, e a ideia de destino passava a ser inconcebível, sendo então o homem o único responsável por seus atos e escolhas.
Assim, dentro dessa perspectiva, recorrer a uma suposta ordem divina representava apenas uma incapacidade de arcar com as próprias responsabilidades. “Não é Deus nem a natureza, tampouco a sociedade que nos define, quem define o que somos por completo ou nossa conduta. Somos o que queremos ser, o que escolhemos ser; e sempre poderemos mudar o que somos. O quem irá definir. Os valores morais não são limites para a liberdade.”
Também existencialista, Simone de Beauvoir era uma ferrenha feminista. Naqueles anos, já havia se consagrado como romancista e ensaísta com profundas análises sobre o papel das mulheres na sociedade. Sartre e Beauvoir sempre liam o trabalho um do outro, e há até hoje grandes debates sobre em que medida um influenciou o outro em suas obras.
As ideias existencialistas de Sartre e o feminismo de Beauvoir empolgavam os intelectuais de todo o mundo, inclusive no Brasil. Durante sua estadia, Sartre proferiu palestras sobre temas políticos importantes, e sua intensa agenda incluiu visitas a fazendas, plantações de tabaco, café e cacau, mercados populares, cidades modernas e favelas, e teve, à época, ampla cobertura da imprensa. Conversou com estudantes, jornalistas, sindicalistas, intelectuais e, segundo consta, até terreiro de candomblé frequentou, além de ter se encontrado com o próprio Juscelino Kubitschek. Aqueles que o acompanharam em suas movimentações afirmaram que “o filósofo anotava tudo o que ouvia em um singelo caderninho, como um colegial aplicado”.
A convite do jovem casal Fernando Henrique e Ruth Cardoso, nascida em Araraquara, Sartre foi convidado a proferir uma palestra na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras daquela cidade. A vinda do duo Beauvoir-Sartre não passou despercebida e causou paixões e debates naquela pequena grande cidade. Alguns contrariados pelo ateísmo declarado do casal e também por sua simpatia ao regime comunista da antiga URSS.
Na então conhecida “Conferência de Araraquara” e à frente de alguns dos maiores intelectuais brasileiros, Sartre retoma o tema das relações entre a teoria e a prática da Filosofia. O auditório da faculdade fervilhava. Quem não conseguiu cadeira assistiu à apresentação em pé, e alguns até se sentaram no chão para ouvi-lo. No centro do debate, o marxismo foi apresentado por Sartre como a única filosofia que dá conta dos problemas de nosso tempo, inclusive porque as condições que o engendraram ainda não haviam sido superadas. Segundo ele, “o existencialismo não poderia mesmo ser definido como uma nova filosofia”. Sartre renunciou ao nome de filósofo e definiu o existencialismo como uma ideologia.
Em uma passagem da “Conferência de Araraquara”, Sartre reflete: “de minha parte, chamo de ideologia simplesmente o fato de que, no interior da filosofia reinante – no interior, pois, do marxismo –, outros trabalhadores surgem depois do desaparecimento dos primeiros grandes filósofos e estão obrigados a ir adaptando perpetuamente o pensamento às mudanças quotidianas, dando um balanço nos acontecimentos na mesma medida em que se processam”. E continua: “na minha opinião, os assim chamados filósofos da existência deveriam, de preferência, ser denominados ideólogos da existência”. Na realidade, Sartre recolocava na ordem do dia o grande problema das relações entre a teoria e a prática.
Distante daquele embate intelectual entre teoria e prática, Hypólito Ferreira, funcionário da Estrada de Ferro de Araraquara (EFA) e filho de imigrantes portugueses que vieram ao Brasil para trabalhar na lavoura, tinha saído da estação de trem onde era o responsável. Com a sorte de ter estudado em uma escola técnica, foi o primeiro da família Ferreira a ter um emprego de carteira assinada. Suas preocupações existencialistas eram outras: como garantir a matrícula dos seus filhos na escola municipal, a fila no serviço de saúde do IAPc (antigo INPS ou SUS) para sua mulher grávida, os cruzeiros que tentaria guardar para o final do mês, o futuro da Estrada de Ferro, de seu emprego e de seus filhos. Mas sua preocupação mais imediata era com a Ferroviária de Araraquara, a Locomotiva, time do seu coração, o qual, como funcionário da EFA, havia ajudado a fundar em 1950. O time enfrentaria naquela tarde o poderoso Santos do jovem e magistral Pelé, no auge de sua forma física e técnica.
O estádio estava cheio quando Hypólito chegou pontualmente para a partida. O jogo foi nervoso, corrido e muito pegado, mas, milagrosamente, com gols dos craques Antonino, Baiano e Faustino, da Locomotiva, e o gol contra de Dalmo, a Locomotiva vencera o mais poderoso dos times do Estado, e quiçá, do mundo. O 4 x 0 da Ferroviária contra o majestoso Santos parceria mesmo um milagre.
Na saída do estádio a comemoração era enorme. Centenas de torcedores de todas as idades festejavam aquele feito único. Hypólito estava radiante e corria para comemorar com sua família. Ao mesmo tempo, outro grupo de homens e mulheres bem vestidos saíam da sala de aula para se juntar à multidão. A cidade vivia um momento de glória com duas das celebridades. De um lado, uma filosofava sobre o determinismo, o existencialismo, a teoria e a prática. A outra era a melhor representação da prática, da vitória e do sucesso. Por onde passava, vencia e deslumbrava com sua arte.
Dizem que Sartre ficara orgulhoso com aquela manifestação. Como a frase de Chico Buarque, achara que “a banda tocava pra ele”, até descobrir, alguns minutos mais tarde, que se tratava de uma comemoração pela vitória da Locomotiva contra o poderoso Pelé. De qualquer forma, era o existencialismo na sua mais completa tradução.
Muitos anos se passaram desse encontro. A Ferroviária, depois de uma década de sucesso nos anos 1960, hoje está na série D do Campeonato Brasileiro e luta para permanecer na primeira divisão do Campeonato Paulista. O Santos, após conquistar o mundo na mesma década, continuava sendo uma máquina de despertar talentos de meninos da Vila. Pelé se tornou Rei. A EFA já não existe mais, incorporada pela já falecida FEPASA. Fernando Henrique foi duas vezes presidente, e nossa saudosa primeira-dama foi uma das principais responsáveis pela criação de um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, batizado de diversos nomes por diferentes presidentes ao longo dos anos.
Simone de Beauvoir influenciou mulheres e homens a abraçarem o feminismo dando voz e trazendo a mulher ao centro do debate. Sartre continuou sendo a celebridade e o filósofo mais famoso do século passado, tendo declinado o Nobel de Literatura, que, aliás, jamais agraciou nosso querido Jorge Amado, autor de livros maravilhosos lidos em diversas línguas. O muro de Berlim não existe mais, a União Soviética fracassou e se fragmentou, a Rússia tornou-se um país isolado, dominado por oligarcas corruptos e mal-intencionados. O discurso marxista já não existe e deixou de ser uma proposta filosófica crível. Os filhos, netos e bisnetos de Hypólito e tantos outros se espalharam pelo estado, pelo país e alguns pelo mundo. Ainda lutam por seus atos e escolhas, seus sonhos e ambições.
O Brasil de hoje é muito diferente daquele dos anos 1960. Passamos por uma ditadura do regime militar e pela redemocratização. Depois de um longo período de inflação e descontrole monetário, conseguimos estabilizar a moeda e resgatamos a nossa autoestima. Tivemos bons e maus períodos, mas avançamos institucionalmente, ainda que tenhamos falhado em eliminar a pobreza e a desigualdade.
Apesar de nossas conquistas, infelizmente hoje o debate se enfraqueceu, vide a última eleição. Em um país em que o endereço onde você nasce é o fator mais determinante para o seu sucesso, as questões deterministas e de livre-arbítrio parecem que ficaram em segundo plano. A prática anda sempre muito distante da teoria. Não sei se conseguimos ser inteiramente responsáveis por nosso passado, nosso presente e se seremos pelo nosso futuro, assim como não me parece que assumimos a responsabilidade por nossas escolhas. Seguimos culpando o outro e com uma enorme incapacidade de arcarmos com as próprias responsabilidades.
Como me disse um amigo, há rumores de que Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir só não se estabeleceram em Araraquara por uma insuperável dificuldade em pronunciar o nome da cidade. Quem sabe o Brasil teria sido diferente se tivessem conseguido. Talvez sua filosofia teria se tornado mais prática.
Em tempo, meu avô se chamava Hypólito Ferreira Fontes. Era português, nascido na pequena Freguesia de Santo André, Concelho de Vila Nova de Poyares, Distrito de Coimbra, e fez sua vida sempre próximo à Estrada de Ferro Sorocabana e de Araraquara. Seu pai morreu prensado entre dois vagões quando Hypólito tinha apenas 14 anos e mais quatro irmãos. Nunca foi torcedor da Ferroviária e também não participou da “Conferência de Araraquara”. Ainda que ele não seja o Hypólito de Araraquara, presto-lhe aqui uma singela homenagem.
PS: Aos interessados, em 1986, o filósofo araraquarense Luiz Roberto Salinas Fortes transcreveu, na íntegra, a “Conferência de Araraquara”, que foi registrada em áudio, e publicou, pela Editora Paz e Terra, um livro bilíngue com o título Sartre no Brasil – a Conferência de Araraquara. No Arquivo Nacional, podem ser encontradas também fotografias sobre a viagem de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir pelas cidades do Brasil e várias outras relíquias dessa visita.
Fernando Fontes Iunes é vice chairman do Citi Brasil.