O comportamento dos mercados nesta segunda-feira mostrou que a quebra da Evergrande é um evento mais complexo do que se imaginava — e que, mais uma vez, o que acontece na China não fica só na China.

Por muito tempo, os mercados trabalharam com a tese de que o Governo chinês agiria para salvar a companhia.  Hoje, já há dúvidas.

Na quinta-feira, o editor do Global Times — um tablóide do Partido Comunista — disse em sua conta no WeChat que os investidores não deveriam trabalhar com a tese de que a Evergrande é ‘too big to fail’, e que a empresa deveria buscar salvação nos mercados, não no Governo.

(A boa notícia: para ele, uma concordata da Evergrande não geraria a mesma crise sistêmica que a queda da Lehman Brothers, dado que estamos falando de uma construtora, e não de um banco, e que o sinal pago por compradores de imóveis na China é muito alto.)

De qualquer forma, a quebra da Evergrande é uma morte anunciada, mas as repercussões para os mercados globais dependerão do seguinte: a empresa vai conseguir reestruturar sua dívida, ou será liquidada?

Fundada em 1996 na cidade de Guangzhou, a Evergrande é uma espécie de MRV ou Tenda: ela constrói casas para baixa renda.

De acordo com a Forbes, é a segunda maior incorporadora chinesa em faturamento: algo como US$ 100 bilhões em 2020. Suas dívidas somam US$ 302 bilhões, e a empresa é um dos maiores emissores de dívida high-yield da Ásia. 

Como tudo na China, a Evergrande é gigantesca: possui mais de 1.000 fornecedores locais, cerca de 1,6 milhão de clientes. Além de seus 200.000 funcionários próprios, a companhia emprega 3,8 milhões de pessoas no país.

No início de setembro, a Evergrande disse estar vendendo ativos para fazer frente a um ‘cash crunch’. A companhia estimou ter US$ 354 bilhões em ativos que, em tese, poderiam ser liquidados rapidamente, mas já se duvida que em meio à crise atual a empresa consiga levantar esses valores numa liquidação. 

Entre esses ativos “líquidos” há uma engarrafadora de água e uma montadora de veículos elétricos, propriedades e terras na China continental e em Hong Kong.

Os capítulos da derrocada

A aceleração dos eventos levando à crise atual começou no início do mês, quando a Evergrande alertou que corria o risco de não pagar suas dívidas.

Em apenas uma semana, a empresa sofreu downgrades de seu risco de crédito, perdeu acesso ao mercado de repo (uma grande fonte de financiamento), e teve a negociação de seus bonds suspensos na bolsa, contaminando outros emissores de junk bonds chineses.

A partir dali, o colapso da companhia passou a ser uma questão de ‘quando’ — aumentando a preocupação com a saúde financeira de outras incorporadoras chinesas como a Fantasia Holdings Group Co., Central China Real Estate Ltd. e a Guangzhou R&F Properties. 

Já no início do mês, pelo menos dois dos maiores credores não-bancários da Evergrande exigiram o repagamento imediato de alguns empréstimos, aumentando a corrida de liquidez. (Os dois credores são sociedades fiduciárias que representam clientes de wealth management e têm sido uma importante fonte de financiamento “paralelo” para a Evergrande e outras incorporadoras chinesas.)

Essa corrida de credores é o mais recente sinal de que a incorporadora inevitavelmente ficará inadimplente em US$ 302 bilhões, o equivalente a 2% do PIB chinês.  A dívida está na mão de bancos, credores “paralelos”, fornecedores e compradores de casas.

O UBS estima que, se a empresa for liquidada, o contágio será significativo, e viria por meio de três canais principais.

Em primeiro lugar, haveria uma perda de confiança brutal do investidor no setor imobiliário e na dívida high-yield asiática, o que pode afetar os ativos financeiros chineses de forma mais ampla.

Em segundo lugar, a quebra da Evergrande poderia disparar um efeito dominó, na medida em que bancos e outros grupos com grande exposição à Evergrande poderiam quebrar ou ser forçados a reestruturar suas dívidas.

Terceiro, e talvez mais importante, a liquidação da companhia poderia levar as agências de classificação de crédito a mudar suas metodologias, removendo o assumption de apoio estatal para diversos setores com bilhões de dívida negociadas nos mercados de dívida internacional e local.

A questão central aqui é se a Evergrande é mesmo “too big too fail” (ou seja, grande demais para quebrar).

Como sua dívida representa 2% do PIB da China, o Governo e o Banco Central devem acabar fazendo algum tipo de resgate — até porque não precisam de autorização do Congresso para liberar pacotes de ajuda. 

Mas o ponto central é o quanto essa confusão — num setor importante da economia, gerador de empregos e crescimento — vai afetar a retomada chinesa pós-pandemia.

Antes da covid, o PIB chinês já vinha desacelerando para níveis de 5% ano — isso, com o setor imobiliário crescendo.  

Agora, como fazer para evitar um efeito dominó em toda a cadeia de fornecedores, credores e clientes, e ao mesmo tempo fornecer estímulo para sustentar o crescimento?

Beijing precisará calibrar o timing, a oportunidade e a profundidade de um possível bailout.

E como o Governo já tem apertado o cerco às grandes corporações chineses — aparentemente retomando a ideia de um crescimento mais igualitário — um cenário em que o Governo deixa a empresa (e os mercados) sangrarem antes de finalmente oferecer o resgate parece, hoje, o mais provável.

José Mauricio Haddock-Lobo é sócio da BRL Consultoria.