Quase daria para definir Ficção Americana (American Fiction, disponível para streaming na Amazon Prime) como um drama familiar. 

O protagonista é Thelonious Ellison (Jeffrey Wright) – que todos chamam de Monk, em referência ao grande pianista do jazz Thelonious Monk – um escritor negro em crise profissional.

Com dificuldades para encontrar uma editora que se interesse por seu novo romance, ele se vê suspenso temporariamente de suas funções na universidade onde leciona literatura, na Califórnia.

Monk se revolta contra o que considera uma visão limitada da experiência negra americana. Não quer escrever romances sobre adolescentes negros que vivem em guetos violentos e acabam assassinados pela polícia.

Mas… sua carreira literária está estagnada.

“Eles querem um romance negro”, diz Arthur (John Ortiz), o agente literário de Monk. 

“Mas é um romance negro,” retruca o escritor frustrado. “Eu sou negro e esse é meu romance.”

Em dado momento, ressentido com a aclamação crítica e o sucesso comercial de uma escritora negra que revisita as tragédias sociais e policiais dos negros, Monk decide escrever ele mesmo um romance nessa linha.

Escrito em caricatural linguagem de gueto, o livro deveria ser uma paródia, uma piada. Mas Arthur encaminha o original a uma editora usando um pseudônimo – e ela faz uma oferta milionária pela obra. 

Com um roteiro afiado que invoca reflexões, Monk nos pergunta qual é o preço de sua obra – e o que ele deve estar disposto a aceitar para receber algum reconhecimento.

O enredo melancólico é desenvolvido com delicadeza pelo roteirista e diretor Cord Jefferson, que já esteve presente em dramas como Succession e Master of None

Ficção Americana é, antes de tudo, uma deliciosa comédia – uma sátira ao retrato estereotipado que se faz dos negros americanos na literatura e no cinema.

Não é um filme só sobre um livro publicado sob pseudônimo. É sobre pertencer, sobre o desastre cômico de uma doença na família, sobre uma sexualidade não aceita, sobre conversas difíceis, sobre amar por inteiro.

O filme chegou ao streaming sem ter passado pelos cinemas brasileiros. É o primeiro longa-metragem de Jefferson, que ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado (o filme é baseado em Erasure, romance de Percival Everett lançado em 2001).

Em um ano eleitoral nos Estados Unidos, quando seguem cada vez mais inflamados os debates sobre temas como racismo, representatividade negra e política identitária, este filme traz um recado importante. Vem lembrar que as mais bem intencionadas generalizações sobre grupos historicamente oprimidos podem, afinal, se converter em uma nova forma de opressão.