A aproximação com Lula

Foi assim que, em 2006, o então deputado Delfim Netto explicou sua inédita derrota nas urnas. “Eles nunca aceitaram e jamais aceitarão me ver ao lado do líder operário que foi adversário do nosso governo,” disse, pesaroso, na noite de 1º de outubro de 2006.

Depois de comandar a economia brasileira por 13 anos – de 1967 a 1974 como ministro da Fazenda e de 1979 a 1985 no Planejamento – Delfim foi eleito deputado federal constituinte em 1986 pelo PDS, o partido do governo durante o regime militar. Foi reeleito em 1990 e assim sucessivamente até 2002, sempre pela mesma legenda (que depois virou PPR, PPB e, finalmente, PP).

Em setembro de 2005, Delfim trocou o PP pelo PMDB. Na época, já havia se tornado um interlocutor frequente de Lula, que desenvolveu com o ministro mais importante da ditadura militar uma relação especial – o petista conversava com o então deputado pelo menos uma vez por semana e o chamava ao Planalto todas as vezes que se reunia com economistas de fora do governo.

A filiação foi disputada por várias legendas, mas Delfim acabou chegando ao PMDB pelas mãos de Michel Temer. Delfim sabia que a proximidade com o governo do PT incomodava parte de seu eleitorado. No entanto, achava que a maioria entenderia que quem mudou desde o fim do regime militar foi Lula, não ele.

No início da apuração dos votos, em 2006, Delfim percebeu que as urnas estavam ariscas. Seus eleitores foram implacáveis. Deram-lhe 38.035 votos, o equivalente a 0,19% do total. 

Tradicionalmente forte em São Paulo, o PMDB sofreu um vexame do qual nunca se recuperou. Só elegeu um deputado federal naquele pleito – o próprio Temer – e mesmo assim na “repescagem” (a contagem de votos que inclui votos de sublegendas coligadas na disputa, um expediente que não se usa mais nas eleições brasileiras).

Delfim se abateu com o revés, mas respeitou o recado: já que seu “pessoal” não entendeu que estando muito próximo de Lula continuava “ajudando” o País, sua trajetória eleitoral havia chegado ao fim. O fato de não ter mais mandato não mudou, porém, seu papel nos bastidores do poder político e econômico.

Se na Câmara dos Deputados Delfim exercia influência direta sobre uma bancada suprapartidária estimada em 40 deputados, que só votavam matérias econômicas depois de consultá-lo, no núcleo dos poderes Executivo e Legislativo, ele era o conselheiro mais influente. Seu trânsito entre Brasília, o centro político, e São Paulo, o centro econômico e financeiro, era único e extremamente valioso para os dois públicos.

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“Essa mulher queria me sequestrar!”

Muito antes de Dilma Rousseff chegar à Presidência, ungida por Lula, Delfim Netto já lhe nutria enorme desconfiança. No primeiro mandato de Lula (2003-2006), Dilma era contundente nas críticas à política econômica liderada por Antonio Palocci.

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Mesmo não sendo integrante da equipe econômica, a então ministra das Minas e Energia não perdia uma oportunidade para atacar todos os aspectos do tripé que Lula herdou do Governo Fernando Henrique. Para Dilma, tudo estava no lugar errado: a taxa de juros era excessivamente alta, o câmbio exageradamente valorizado, e a política fiscal, extremamente contracionista.

Lula estimulava o debate interno, desde que as desavenças não se tornassem públicas. Mas se há algo em Brasília impossível de esconder são as disputas em torno da economia – e tornar públicas as divergências é parte crucial deste jogo.

Aliado de primeira hora de Palocci, Delfim criou e disseminou na imprensa a expressão “fogo amigo” para definir a oposição de Dilma à política econômica – mas jamais criticou a ministra nas conversas com o Presidente.

Quando o escândalo do mensalão tomou Brasília, em maio de 2005, José Dirceu, ministro da Casa Civil, cai pouco depois, e a oposição, liderada pelo PSDB, passa a mirar Palocci. Naquele momento, Delfim, ainda deputado, percebeu que o enfraquecimento do ministro era um risco para a manutenção do modelo econômico.

Dilma não era uma antagonista solitária da política de Palocci. Os ministros do PT, com a exceção de Paulo Bernardo, do Planejamento, também se queixavam do caminho escolhido. Mas, de longe, Dilma era a voz mais dissonante dentro do governo contra o que chamava “política neoliberal do PSDB”.

O que Delfim temia acabou acontecendo. Quando Dirceu é demitido, Lula nomeia Dilma para a Casa Civil. “O Presidente está fazendo um aceno à esquerda do PT no momento em que a política econômica se mostra bem-sucedida”, disse o ex-ministro na ocasião. “Isso não tem como terminar bem.”

Preocupado com o poder investido por Lula em Dilma, Delfim costura no Congresso uma estratégia para baixar a temperatura da crise política e fortalecer Palocci. O PSDB e o PFL operavam as CPIs abertas no Congresso para investigar o mensalão e outros casos de corrupção. No limite, o que estava em jogo era o impeachment de Lula.

Delfim obtém das principais lideranças dos dois partidos o compromisso de que, se o governo concordasse em anunciar medidas para aumentar o esforço fiscal e zerar o déficit público nominal (conceito que inclui todas as despesas, inclusive o dispêndio com juros) num prazo determinado, Palocci seria poupado e a oposição não levaria adiante o processo de impeachment.

Com a ajuda direta de Delfim, Palocci e Paulo Bernardo formularam o plano “déficit zero” e o levaram para uma reunião com Lula no Planalto. Preocupado em evitar um embate direto entre Palocci e Dilma, ficou acertado que, no encontro, Paulo Bernardo apresentaria as medidas.

Como é de praxe, em Brasília não se faz uma reunião para tratar de tema tão importante sem que, antes, todos – principalmente o Presidente – sejam informados em detalhes dos temas a serem tratados. 

Vivendo seu pior momento no governo, quando sua popularidade caiu abaixo de 25%, Lula instigou Dilma a bater com força na proposta. Para o Presidente, o objetivo da oposição era enfraquecê-lo ainda mais, uma vez que, com mais arrocho fiscal, o governo não teria os instrumentos políticos para contornar a crise política.

A especialidade de Dilma, até então, era demolir com frases e palavras duras a política econômica de Palocci, ainda que tudo estivesse dando certo. A então chefe da Casa Civil não deixou o pobre Paulo Bernardo sequer apresentar seus slides, tamanha a virulência que usou para ferir de morte o plano “déficit zero”.

Ato contínuo, Dilma deu entrevista a um grande jornal, rotulando o plano gestado originalmente por Delfim com apenas uma palavra: “rudimentar”. O que se seguiu foi o que Delfim anteviu meses antes: sem acordo, a oposição dispara suas baterias contra Palocci, e dois meses depois o ministro cai.

Aconselhado pelo próprio Delfim, Lula conversa com banqueiros e grandes empresários, assegurando a todos que, dali em diante, ele seria o avalista da responsabilidade fiscal e monetária. Portanto, o novo ministro da Fazenda – Guido Mantega – passaria a ter importância menor.

Em 2006, a política “neoliberal” de Palocci derruba a inflação para a segunda menor taxa anual da história, acelera o ritmo de crescimento da economia para cerca de 4% ao ano, a taxa de desemprego começa a recuar de forma mais rápida, o Brasil antecipa o pagamento da dívida com o FMI e, assim, colhendo notícias cada vez melhores na economia, Lula supera a crise política e é reeleito, derrotando no segundo turno Geraldo Alckmin.

Delfim antecipou todos os movimentos de Lula. Sua cisma com Dilma só escalava. Num dado momento, perguntado se além das ideias econômicas havia algo que o fazia temer tanto a petista, ele disse, em tom sério e conspícuo: “Essa mulher, quando era guerrilheira, quis me sequestrar”.

Em 2010, foi confirmada a informação de que, em 1969, o grupo VAR-Palmares, do qual Dilma era militante clandestina, planejou em detalhes o sequestro de Delfim. Razão: tirar de cena o ministro da Fazenda responsável pela política econômica que estava tornando popular o governo militar.

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Delfim, Dilma e Lula

Um dos principais conselheiros de Lula nos dois primeiros mandatos do petista, Delfim tinha convicção de que Dilma representava um risco para o sucesso do Presidente, mesmo sem jamais haver dito isso a ele. 

Mas Lula sabia da opinião do ex-ministro e, por isso, tentou convencê-lo de que Dilma não era o que ele pensava.

Quando Palocci foi trocado por Mantega, havia o temor de que a troca resultasse numa mudança de rumo na política econômica. Mantega era economista do PT há décadas e, durante os dois mandatos de FHC, havia sido crítico ferrenho das políticas tucanas que Lula acabaria adotando.

Mas o Mantega que substituiu Palocci já era menos esquerdista. Em 2003, assumiu o Ministério do Planejamento por acaso. O cargo seria ocupado por Roseana Sarney, como parte da negociação de Lula com José Sarney, do PMDB. A montagem do primeiro ministério atendia ao interesse do petista de contar com ampla base de apoio no Congresso.

O acerto acabou esbarrando nos interesses de outras lideranças do PMDB. Para evitar que o Planejamento caísse nas mãos de algum quadro indicado pelas correntes mais esquerdistas do PT, Palocci trabalhou para que Lula nomeasse Mantega.

O cálculo de Palocci era o seguinte: Mantega era 100% Lula, portanto jamais alçaria voo solo no Planejamento. Deu certo. Durante os dois anos em que comandou o ministério, Mantega não disputou o modelo econômico herdado de FHC.

No fim de 2004, Palocci convenceu Lula a demitir o então presidente do BNDES, Carlos Lessa, um dos protagonistas do chamado “fogo amigo”. Para o lugar de Lessa, Palocci sugeriu o nome de Mantega; Lula concordou.

Mantega foi substituído no Planejamento pelo então deputado Paulo Bernardo, um dos quadros mais moderados do PT desde o início da década de 1990. Quando foi secretário de Fazenda do Mato Grosso do Sul, Bernardo teve muito contato com o então ministro da Fazenda de FHC, Pedro Malan, que certa vez o elogiou publicamente. “Se todo secretário de Fazenda fosse como o Paulo Bernardo, não haveria mais desequilíbrio fiscal nos Estados,” teria dito Malan.

Mantega saiu do BNDES, assumiu a Fazenda, nomeou alguns economistas de corte desenvolvimentista, mas não mudou o rumo da política. Em novembro de 2006, Lula é reeleito e decide manter Mantega no posto, além de Dilma na Casa Civil e Henrique Meirelles no Banco Central.

Em 2007, o jogo recomeça. No início daquele ano, Dilma anuncia o PAC com pompa e circunstância no Planalto. Durante a cerimônia, uma nova versão de Mantega emerge: o de crítico contumaz, duro e implacável da política de juros do Banco Central.

O alvo, na verdade, não era exatamente a política monetária, mas o responsável por ela: Meirelles. Em abril de 2008, portanto antes do pior momento da crise financeira mundial, Mantega aumenta a pressão para Lula demitir Meirelles.

Naquele mês, Lula chama Delfim para uma reunião com Mantega, Meirelles, Paulo Bernardo, Luciano Coutinho (presidente do BNDES), e um convidado cuja presença chamou a atenção da maioria: Luiz Gonzaga Belluzzo. O tema da conversa – a mudança radical da política econômica – surpreendeu até aqueles que, no grupo, tinham ressalvas ao modelo adotado.

Informados do plano por dois dos participantes do encontro em Brasília, os maiores banqueiros do País pressionaram as agências de classificação de risco a conceder ao Brasil o grau de investimento.

Os banqueiros fizeram entender que mexer naquela política exitosa e no último representante da equipe que a colocou de pé era um contrassenso. Lula entendeu e, por isso, a implantação da Nova Matriz Econômica foi adiada.

Dilma enganou Lula, mas nunca enganou Delfim.