Chega às livrarias esta semana o segundo volume de Escravidão (512 páginas, Globo Livros, R$ 59,90), a trilogia soco-no-estômago do jornalista e escritor paranaense Laurentino Gomes, que retrata minuciosamente os mais de três séculos de escravidão no Brasil — e é leitura fundamental sobre o maior território escravocata do hemisfério ocidental.

As repercussões da escravidão continuam a se manifestar no Brasil contemporâneo:  de uma bicicleta “roubada” no Leblon até uma Faria Lima extremamente branca, passando pelo quarto da empregada, o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para fechar seu fosso racial. 

Entender o tamanho do câncer que foi a Escravidão, seus mecanismo perverso e sua intensidade, talvez seja um bom começo.

A escravidão no país contabilizou cifras industriais: foram cerca de 4,9 milhões de africanos, ou 40% de todos os 12,5 milhões que embarcaram da África para as Américas entre os séculos XVIII e XIX. Durante os 350 anos de tráfico negreiro, a média diária de mortos no Atlântico era de 14 pessoas. Os corpos eram jogados aos tubarões. E ao fim oficial da escravatura, em maio de 1888, o Brasil deixou os escravizados a Deus-dará. 

No ano passado, Laurentino ganhou o Prêmio Jabuti pelo primeiro volume da trilogia, que foca na África, resultado de uma imersão que incluiu cinco viagens a oito países do continente. O terceiro volume abordará a Lei Áurea e suas heranças, com lançamento previsto para 2022. 

O segundo volume, que está saindo agora, traz a efervescência do século XVIII: da corrida do ouro em Minas Gerais, incluindo o contrabando escancarado, até a chegada da Corte de Dom João.  

Laurentino desbravou trilhas, engenhos, cultos religiosos, igrejas, e cantos remotos de Pernambuco, Bahia, Paraíba, Alagoas, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo — e dividiu parte desta jornada com o Brazil Journal.  

 

Como a herança da Escravidão é vista no Brasil e em Portugal?

O livro será publicado em Portugal nesta última semana de junho. O assunto tem se tornado importante em Portugal, mas existem visões diferentes nos dois lados do Atlântico. Entre nós, o legado da escravidão é ainda um nervo exposto que, ao ser tocado, dói. O racismo é um tema presente em nosso cotidiano, polêmico, delicado e politicamente sensível. 
 
Em Portugal, também se discute tudo isso, mas o olhar tende a ser mais de um ponto de vista histórico, de um ajuste de contas como passado, do que propriamente do enfrentamento de passivos sociais mal resolvidos. Curiosamente, isso se reflete no tratamento gráfico da capa dos meus livros nas edições brasileiras e portuguesas. No Brasil, três cores se alternam nas capas da trilogia: preta, vermelha e branca. São todas muito simbólicas da experiência da escravidão entre nós. E essa é mesmo uma dor mais brasileira do que portuguesa. 
 
Em Portugal, a capa do livro tem cores mais suaves, na tonalidade marrom e magenta, que lembra um mapa ou um documento antigo. Portanto, remete mais ao aspecto histórico do assunto do que a uma ferida social ainda a ser tratada e cicatrizada.

Depois de tanta pesquisa, o que mais te surpreendeu e chocou neste volume 2?

Eu fiquei particularmente impressionado ao observar o quanto o comércio de gente se tornou uma prática corriqueira e banal no Brasil do século XVIII. A Escravidão era um fato da vida, aceito praticamente sem questionamento por brancos, negros, livres ou cativos. 

Mesmo irmandades religiosas de negros e mestiços eram donas de escravos, uma vez que esse era o costume aceito por todos. Por volta de 1750, negros escravizados eram vistos numa sucessão ininterrupta de colônias europeias que se desdobravam do Canadá até o sul da Argentina e do Chile atuais. Minas Gerais tinha a maior concentração de pessoas negras de todo o continente americano. Os brancos formavam uma minoria relativamente insignificante. 

Leilões em praça pública para a venda de pessoas no atacado e no varejo se tornaram cenas habituais, especialmente nos três principais portos de entrada dos navios negreiros – Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Nessas ocasiões, homens e mulheres eram lavados, depilados, esfregados com sabão, untados com óleo de coco ou dendê, pesados, medidos, examinados e apalpados em suas partes íntimas, obrigados a correr, pular e exibir a língua e os dentes. Ao término desse ritual metódico, vendedores e compradores acertavam o preço de acordo com a idade, o sexo e o vigor físico dos cativos que, em seguida, eram marcados a ferro quente com as iniciais da fazenda ou do nome do seu novo proprietário. O cultivo de grandes lavouras e a busca por novas riquezas no Brasil e no restante da América produziu uma inflação nos preços dos africanos escravizados. 

 
Como os abolicionistas ajudaram no fim da Escravidão?

O pernambucano Joaquim Nabuco, o fluminense José do Patrocínio e o baiano André Rebouças diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Essa segunda abolição o Brasil jamais fez.

Um segundo legado da escravidão é o preconceito. É uma marca terrível das nossas relações sociais, embora sempre procuremos disfarçá-la construindo mitos a respeito de nós mesmos, como, por exemplo, a ilusão de que seríamos uma grande e exemplar democracia racial. O noticiário se encarrega de desmentir isso.
 
 
Um dos pontos abordados neste volume foi o protagonismo das mulheres negras da época. Que papel elas tiveram?
 
11547 53848b2c 896b db28 f165 3bdad1efbda3As mulheres foram centrais na construção da sociedade negra e mestiça do Brasil, embora isso nem sempre seja devidamente reconhecido nos livros didáticos. Elas agiram ativamente para conquistar a liberdade de seus maridos e filhos, ocuparam cargos importantes na direção de irmandades religiosas, fundaram terreiros de candomblé, se elegeram “rainhas” de comunidade negras, lideraram quilombos, administraram fazendas, participaram da mineração de ouro e diamante. Em geral, realizavam serviços domésticos, mas também trabalharam nas lavouras de cana-de-açúcar e nos engenhos, em jornadas tão extenuantes quanto a de seus companheiros homens. 

No Nordeste, ajudaram na criação de gado como vaqueiras e curraleiras. Em um Brasil ermo e isolado, em que não existiam médicos e hospitais, foram benzedeiras e curandeiras. Algumas chegaram a ser donas de engenhos, fazendas, minas de ouro, vendas, tabernas e variados outros negócios. E muitas também, depois de libertas, foram donas de numeroso plantel de escravos.

Um caso muito famoso, que também descrevo nesse livro, é o de Chica da Silva, que nasceu escrava na atual região de Diamantina, casou-se com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, se tornou uma grande dama da sociedade local e, ao final da vida, era dona de grande número de escravos.

Os brasileiros desconhecem a extensão da Escravidão? Como o tema tem sido abordado nas escolas hoje em dia? 

A melhor maneira de enfrentar a herança da escravidão é pela educação, pela leitura e, em particular, pelo estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. Há uma mudança muito positiva em andamento porque, até recentemente, o tema era ignorado quase que por completo nos currículos escolares e livros didáticos. 
E, não por acaso, nunca tivemos um grande museu nacional da Escravidão e da cultura negra. Museus, como se sabe, não são apenas lugares de passeio e entretenimento. São locais de estudo e reflexão. Não ter um museu com esse perfil é, portanto, parte desse projeto nacional de esquecimento. Acho que, oculto sob esse aparente desinteresse, existe um projeto nacional de esquecimento. 

Em vez de estudar e refletir a sério sobre a história e o legado da Escravidão, o Brasil preferiu construir alguns mitos a respeito de nós mesmos. Um deles afirma que teríamos tido uma Escravidão mais benévola, patriarcal e boazinha, o que também teria dado origem a uma grande democracia racial brasileira. 

Tudo isso é mito e está sendo confrontado hoje pela realidade dos números, que mostram um abismo de oportunidades e condições de vida entre o Brasil europeu e o Brasil africano. Rediscutir nossa identidade nacional, o que inclui um reconhecimento da importância e do legado da escravidão, é um dos nossos desafios mais urgentes.

No Brasil de hoje, ainda há quartos de empregada, minúsculos e sem janelas, em áreas de serviço. É uma herança visível da Escravidão?

O quartinho de empregada é um indicador de que a Escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas, que incluem o preconceito racial e um regime de trabalho que, em muitos aspectos, se assemelha ao das antigas senzalas. 

O Brasil tem feito esforços genuínos na criação de leis, instituições e regulamentos destinados a combater o racismo. Mas ainda há muito a ser feito. A ideologia racista, usada no passado para justificar o tráfico negreiro, permanece ainda hoje oculta nas formas preconceituosas de relacionamentos entre brancos e negros.

No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades a todos os brasileiros, independentemente da cor da pele, explica essas diferenças. Ou seja, o verdadeiro racismo não se expressa apenas com palavras e atitudes ofensivas, que a lei proíbe, mas na recusa em dar oportunidades às pessoas negras ou afrodescendentes de se realizarem plenamente como seres humanos. Esse é o famoso racismo estrutural, enfronhado na nossa maneira de ser, de agir e de pensar.