Afinal, o Bolsa Família está tirando pessoas do mercado de trabalho, como se queixam muitos empresários que enfrentam dificuldades para contratar funcionários?

“Sim e não,” diz a economista Laura Müller Machado, uma especialista em políticas públicas e professora do Insper.

Em sua análise, o programa deve ser festejado pela proteção aos mais vulneráveis e pela redução do trabalho indigno. Mas em seu atual desenho, ele afasta as pessoas do mercado formal, porque elas ficam expostas a perder o benefício, ao contrário do que ocorre com quem está na informalidade.

“Os mais pobres estão saindo do mercado formal,” Laura disse ao Brazil Journal. “Se quando o beneficiário arruma um emprego a gente vai lá e pune, estamos atrapalhando nós mesmos, né?”

Para ela, é necessário melhorar as regras de transição, além de acompanhar de perto as famílias – algo que não vem ocorrendo.

“Entregamos o programa, não acompanhamos a pessoa, não ajudamos ela a ganhar mais, não ajudamos ela a se qualificar profissionalmente, a se formalizar,” disse. 

Outro grande problema é a falta de focalização nas despesas: muitos pobres que deveriam receber não recebem, enquanto milhões que não deveriam receber estão recebendo.

Laura Muller Machado ok

Fazendo as contas, o gasto federal necessário para erradicar a pobreza no Brasil seria de R$ 76 bilhões ao ano. Isso levando em consideração o critério do Governo, de que estão na pobreza as famílias com renda mensal abaixo de R$ 218 por indivíduo.

No entanto, o orçamento para o Bolsa Família é mais que o dobro do ‘necessário’ e somará R$ 167 bilhões neste ano – e isso sem falar na série de outros programas sociais. “É muito pouco eficiente o que estamos fazendo,” resumiu Laura.

Abaixo, os melhores trechos da entrevista.

O Bolsa Família está tirando pessoas do mercado de trabalho?

Sim e não. Acho que essa é a resposta.

O primeiro ponto é que precisamos ter muito orgulho de um programa tão generoso como o Bolsa Família. O valor ainda fica abaixo de equivalentes – fazendo os ajustes de moedas – dos planos de países como Inglaterra, Alemanha e EUA.

Mas, para o Brasil, é o programa mais generoso que já tivemos, e isso deve ser motivo de orgulho. É bom lembrar que todo mundo tem um benefício do tipo, e o nosso não é dos maiores valores, apesar de ser o maior que o Brasil já teve.

Como é feita essa comparação, para afirmar que ele não é tão generoso quanto ao de outros países?

Em alguns países na Europa, o auxílio equivale a 40% da renda média. O nosso não chega a isso.

Se a renda média aumenta, o valor aumenta em outros países. No Brasil a gente não atualiza automaticamente.

Só que o Bolsa tem o efeito do salário reserva. A partir do momento em que a gente fala, ‘Todo brasileiro vai receber R$ 600,’ é um jeito de dizer que a gente não quer que ninguém trabalhe por menos de R$ 600.

Ninguém vai trabalhar por menos desse valor. Acho isso ótimo também, porque não gostaria que alguém trabalhasse por menos de R$ 600.

Foi o que reduziu o trabalho escravo no Brasil e outros tipos de ocupações inadequadas.

Toda transferência de renda focalizada gera um desincentivo ao trabalho. O programa pode suavizar ou piorar isso. O nosso Bolsa não é amigável ao mercado de trabalho.

Se o valor pago é razoável, os problemas estão na execução e no alcance?

Exato. É um valor razoável, é generoso. Precisa ser assim.

Agora, não está escrito lá para transferir renda e não cuidar dessas pessoas. O problema está no formato da oferta, nos serviços atrelados ao programa para que as pessoas saiam dessa condição.

A primeira questão é do desenho.

Somos um país cheio de informalidade. Metade da força de trabalho está na informalidade.

Vamos supor que alguém que receba o Bolsa arrume um trabalho formal. O Governo vai automaticamente saber e vai tirar o benefício, porque a pessoa vai ganhar R$ 1.500 por mês.

Agora vamos supor outra pessoa muito parecida, mesmo gênero, mesma formação, uma irmã daquela pessoa, mas que arruma um trabalho informal. O Governo não vai ficar sabendo. Ela vai ficar com os R$ 1.500 mais o Bolsa.

Como a checagem é falha, estamos penalizando o mercado formal. A verdade é essa. Deveria haver mecanismos para suavizar essas situações.

Então, não é que as pessoas que recebem os benefícios não estão trabalhando, eles estão respondendo os incentivos que são dados.

Não há checagem com visita do auxiliar, com acompanhamento das famílias que recebem Bolsa Família. A pessoa vai lá, faz o cadastro, volta depois de dois anos. Nesses dois anos, ninguém fala com ela.

Portanto, é meio esperado que as pessoas vão reagir aos incentivos, procurando o que gere maior valor para elas. É o que a gente aprende na faculdade de Economia – otimizar a própria renda.

Como corrigir os incentivos?

Os mais pobres estão saindo do mercado formal. A taxa de ocupação deles é muito baixa. Se, quando o beneficiário arruma um emprego, a gente vai lá e pune, estamos atrapalhando nós mesmos, né?

Então, essa regra de transição tinha que ser suave e com uma comunicação bem-feita.

‘Pessoal, ó, se vocês arrumarem um emprego, vocês vão receber um bônus, vocês vão receber um prêmio.’

Para quem está no mercado informal, tem que acompanhar de perto e ir checando as condições de trabalho e ajudar no desenvolvimento profissional das pessoas. Se elas estiverem prosperando, não haverá problema em perder o benefício.

É muito pouco eficiente o que estamos fazendo. Entregamos o programa, não acompanhamos a pessoa, não ajudamos ela a ganhar mais, não ajudamos ela a se qualificar profissionalmente, a se formalizar, a entender as consequências de ter Previdência etc.

Aí elas trabalham, recebem o benefício, mas não necessariamente poderiam ter um ganho até maior do que eles têm com o Bolsa via outros mecanismos de melhoria de produtividade.

As despesas com o programa cresceram bastante, é mais do que vocês estimaram para eliminar a pobreza no País, mas a pobreza permanece elevada. Por quê?

É um problema primordialmente de focalização.

Antigamente, o assistente ia até a casa da pessoa, conversava, discutia, tinha uma relação de vínculo mais forte. Hoje isso é feito meio que a distância. Isso não é um mecanismo nem para você conceder nem para ajudar a pessoa a sair da condição. Precisa estar mais perto.

Ninguém vai tirar ninguém da pobreza à distância. Uma pessoa fez uma solicitação, ótimo, imediatamente manda o assistente lá conversar com a pessoa, conversar com a família toda, entender as condições, entender a situação e eventualmente até conceder outros benefícios.

Pode ser que alguém da família precise de um BPC (Benefício de Prestação Continuada, programa para idosos e pessoas com deficiência).

O caminho deve ser de se aproximar dessas pessoas, e não ficar a distância e depois fazer uma análise administrativa. Quem acaba sendo penalizado é só quem está formalizado, porque é mais fácil cruzar dados.

Está sendo feita uma análise muito fria e administrativa em um país que é informal. Todo mundo está na informalidade, metade da força de trabalho está no mercado informal.

Esse é o primeiro ponto que explica por que a pobreza não baixa a zero. O segundo ponto é que muita gente está precisando do benefício, mas não está indo lá pedir.

Os agentes do Governo precisam ir às comunidades. O líder comunitário conhece as pessoas que moram lá.

O Betinho falava, ‘A pior dor é muda.’ A pessoa não fala, não pede.

Aí, como resultado, gastamos muito e não acertando o alvo, tem um grupinho ali que fica fora.

O que mais pode ser feito? Usar a tecnologia para acompanhar essas pessoas?

O Abhijit Banerjee, ganhador do Nobel, publicou um trabalho no ano passado no qual diz que o mundo faz cada vez mais transferência de renda e o maior desafio tem sido a questão do cadastro. Ter um bom cadastro é o maior entrave para a gente resolver a pobreza no mundo.

Ele faz três recomendações.

A primeira delas é o uso de informações tempestivas, porque a pobreza e a informalidade são muito voláteis. Precisa haver algum mecanismo para saber o que está acontecendo na vida das pessoas.

Ele sugere, por exemplo, o uso de informações da conta de celular. Todo mundo no Brasil tem um celular, mesmo que seja pré-pago. É possível fazer estimativas a partir da flutuação do uso do aparelho, ou de outras contas, como de eletricidade.

Então, essa é uma das sugestões dele, usar um cadastro autodeclarado em conjunto com o cruzamento dessas informações com dados mais de renda, mais tempestivos.

A outra recomendação é a visita ao domiciliar, não há como evitar. Ninguém vai sair da pobreza por dado administrativo, sem acompanhamento domiciliar.

Não dá para acompanhar todo mundo? Dá para fazer por amostragem. Hoje não estamos acompanhando ninguém. Poderiam ser feitas checagem em algumas áreas, pelo menos, para ver se as informações estão corretas.

O terceiro ponto é fazer ofertas de emprego que sejam um trabalho adequado.

A gente não acompanha essas pessoas. Em vez de ficar discutindo se elas estão trabalhando ou não, precisamos oferecer serviço de qualificação profissional, fortalecer a produtividade dessas pessoas.

Precisa falar para elas, ‘Você vai ficar com o Bolsa, mas vamos te oferecer um curso sobre como conservar melhor os bolos e as coxinhas que você faz, como valorizar seu produto.’

Acho que as pessoas vão querer aprender a ganhar mais. Não estamos entregando serviços produtivos e ficamos reclamando do Bolsa – é algo que atrapalha nós mesmos.

Não estamos educando as pessoas, não temos uma população bem formada em matemática, em gestão financeira. Então as pessoas tomam decisões meio bagunçadas, sem informação.

Transferência de renda é ótimo, mas não pode ser só isso. Todo esforço tem sido para transferir mais renda, transferir mais renda. Poxa, e os serviços? E o conhecimento? E o fortalecimento da condição daquela pessoa tomar uma boa decisão do ponto de vista de longo prazo? Acho que tem muito espaço para resolver os problemas sem punir as pessoas.

Não precisa colocar mais dinheiro em novos programas. O problema maior é de focalização. O que não falta é programa – Bolsa Família, BPC, Minha Casa Minha Vida, Água para Todos, Luz para Todos…

O problema é de focalização e qualidade do gasto.

A desigualdade também vem caindo lentamente, a despeito do grande aumento de gastos com programas sociais. O que precisa ser feito?

A Europa é menos desigual que o Brasil, mas a característica da desigualdade é muito diferente.

A nossa curva de concentração de renda sobe muito rápido, no finalzinho. A da União Europeia vai mais flat.

O que isso quer dizer? O pobre brasileiro é mais pobre do que o da Europa, mas o rico brasileiro é bem mais rico do que europeu, proporcionalmente.

Então, para o Brasil, reduzir a pobreza ajuda, mas não vai resolver a desigualdade. Há muita concentração no topo. Temos questões mais profundas.

Tributar mais os ricos resolve?

Olha, acho que essa é uma pergunta de muitos milhões de reais.

O Thomas Piketty, quando eu comecei a estudar, estudava desigualdade. Hoje ele só discute o 1% mais rico. Ele entende que esse grupo tem uma série de acessos privilegiados ao governo, criando o risco de perpetuar a desigualdade.

Então é um problema fiscal, mas há outras dimensões – de arranjo político, de apropriação de recursos do Estado e de políticas públicas.

A gente já gasta tão mal, então eu tenho um pouco de preocupação de apropriar os recursos dessas pessoas e gastar tudo mal também. Seria preferível gastar bem o que já temos, que não é pouco.

O Estado brasileiro tem R$ 3 trilhões, pelo amor de Deus, é muito dinheiro. Muito dinheiro – e mais do que o suficiente para ter uma série de políticas razoáveis.

Acho que tem espaço, sim, para aumentar a tributação, mas isso é a solução? Acho que não.

Se pegarmos esse dinheiro todo e gastarmos mal, vamos ficar no mesmo lugar. Nós, como sociedade, não estamos satisfeitos com a maneira como o Governo está gastando o nosso dinheiro.