“Ô loco, meu ! Quatro transplantes? Só porque ele é famoso…” 

Errou!

Fausto Silva foi submetido recentemente a mais dois transplantes, um de fígado e outro de rim, este último um retransplante planejado por sua equipe médica há um ano. As cirurgias foram realizadas no Hospital Israelita Albert Einstein.

Em 2023, o apresentador que animou as tardes de domingo por mais de 30 anos na TV Globo já havia sido submetido a um transplante de coração e outro de rim, órgão que agora foi substituído, seguindo o que fora programado pelos médicos que o acompanham.

Após as primeiras notícias sobre os novos transplantes em Faustão, novamente surgiram especulações sobre um suposto favorecimento ao ilustre paciente que, por sua condição de celebridade e de milionário, teria passado à frente de outras pessoas na “fila”. Postagens e comentários maldosos nas redes sugeriram que o apresentador teve “preferência” por ser rico, famoso e de estar em um hospital particular de primeira linha. 

Mais uma vez, a imprensa tradicional foi rápida em exibir reportagens mostrando como funciona o sistema nacional de transplantes, que desde 1997 é regulado pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e possui critérios absolutamente técnicos e rigorosos para evitar favorecimentos – uma prática que poderia ter ocorrido veladamente antes do estabelecimento de normas relativas a tempo de espera dos pacientes inscritos, compatibilidade e gravidade para a seleção dos pacientes a serem transplantados. 

O Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, veio a público no Instagram e “chamou o VAR” para explicar que não houve qualquer irregularidade no caso de Faustão, que o apresentador estava numa espécie de “fila de urgência” em razão da gravidade de seu quadro clínico, a exemplo do que também ocorrera em outros 100 casos de pacientes desconhecidos do público no ano passado.

Sem dúvida são iniciativas louváveis, mas é pouco.

A especulação e as fake news contra o sistema de transplantes brasileiro neste caso podem desestimular a doação de órgãos no País. São 46,7 mil brasileiros aguardando um transplante de órgãos, e a taxa de doadores por milhão de população (pmp) por aqui equivale à metade das verificadas em países desenvolvidos como Espanha e EUA.

Adicionar o ingrediente da desinformação tende a agravar este quadro, como infelizmente já aconteceu no caso das vacinas. Vidas correm risco por tamanha irresponsabilidade.

É importante esclarecer: transplante não tem “fila”. Tem cadastro técnico, que é dividido por órgão – coração, pulmão, fígado, rim, pâncreas – ou tecido, no caso das córneas. A data de inscrição de um paciente é apenas um dos critérios de seleção para o transplante. Se uma pessoa corre o risco de entrar em falência de órgãos vitais, ele se torna prioridade. Este é um dos filtros. As características do doador-cadáver, como tipo sanguíneo e outros, afunilam ainda mais a lista de possíveis transplantados. No caso dos rins, um antígeno específico do doador, o HLA, é essencial para definir quem será o receptor com mais probabilidade de sucesso no transplante.

Reportagens factuais produzidas em razão da celeuma ajudam a esclarecer esses pontos, mas o tema merece uma “cauda” mais longa, com campanhas permanentes e mobilização de toda a sociedade, incluindo poder público, jornalistas, médicos, gestores dos serviços de saúde e influenciadores digitais. A regulação das big techs também é essencial para evitar a proliferação de informações falsas sobre o processo doação-transplante.

Ricardo Liguori é jornalista e executivo de comunicação na área da saúde desde 2003.