Na polarização que tomou conta do Brasil nos últimos anos, Chico Buarque foi cancelado por setores da sociedade que misturam sua política com sua arte.
Neste sentido, Que Tal um Samba? – seu show em turnê pelo País – deve ser evitado por quem discorda dele.
A política é tema corrente em boa parte das 33 canções interpretadas pelo cantor e compositor de 78 anos e por sua parceira de palco, Monica Salmaso.
Em termos musicais, o Analista de Bagé (o personagem hilário de Luis Fernando Veríssimo) provavelmente definiria Chico como “mais ortodoxo do que receita de Biotônico Fontoura.”
Sim, Chico flertou com gêneros como o blues, o jazz e o reggae. Sua principal fonte de criação, contudo, está nos diferentes ritmos que compõem a música brasileira: samba, baião, marchas, valsas (que têm origem europeia mais foi adaptada para o Brasil). As letras são outro diferencial – e bota diferencial nisso – na carreira do autor, que cantou desde temas eróticos e feministas a canções de protesto, passando por retratos do cotidiano.
Composto durante mais de cinco décadas de carreira, o cancioneiro de Chico traz um retrato do Brasil tristonho dos últimos tempos – como Passaredo, criação de Buarque e Francis Hime, cujos versos falam: “Bico calado / Toma cuidado / Que o homem vem aí;” ou O Meu Guri, sobre o infindável problema da marginalidade infantil, e Deus lhe Pague, um protesto contra a ditadura militar disfarçada de agradecimento.
Outras canções adquirem tons proféticos quanto aos escândalos de hoje: Bancarrota Blues, que ele e Edu Lobo criaram em 1985, fala de “diamantes que rolam no chão.”
Assumidamente tímido, o compositor faz até uma brincadeira sobre sua – improvável – falta de destreza ao violão. “Às vezes posso me atrapalhar com os acordes, ou esquecer um pedaço de letra. Pensei até em colocar um teleprompter. Mas ia dar errado. Iam dizer que se não sei cantar, nem tocar as minhas músicas, é porque não sou o autor,” brinca, fazendo alusão à juíza que, num processo movido por Chico contra o deputado Eduardo Bolsonaro, duvidou que ele fosse o autor de Roda Viva.
As canções e as brincadeiras são ladeadas por uma banda competente que acompanha Chico há décadas: o pianista João Rebouças e a tecladista Bia Paes Leme; o baterista Jurim Moreira (em substituição a Wilson das Neves, morto em 2017) e o percussionista Chico Batera; os vários sopros de Marcelo Bernardes; o baixo de Jorge Helder e o violão, a guitarra e a direção musical de Luiz Claudio Ramos.
Monica Salmaso, a companheira de palco de Chico, merece um parágrafo só seu. Uma das maiores intérpretes da MPB dos últimos tempos, Monica confessou certa vez que era alimentada de Chico Buarque via “mamadeira”.
No show, cabe a Monica a missão de preparar a plateia por cinco números musicais até a entrada do compositor – que acontece na sexta canção, Paratodos. A ela são reservados números dificílimos como Beatriz – eternizada por Milton Nascimento – e a já citada Passaredo.
Embora assuma uma postura reverente diante do compositor carioca, Monica nunca é subserviente. Está ali em pé de igualdade com o ídolo, e totalmente à vontade à frente da banda.
Em Maninha, que Chico fez para a irmã Miúcha, morta em 2018, a cantora se permite uma pequena criancice: dar um “chute no vácuo” ao final dos versos “um dia ele vai embora/ Para nunca mais voltar”, como se expulsasse de vez um certo político brasileiro.
Que Tal um Samba? é feito de composições – ou pelo menos trechos – de outras fontes de inspiração de Chico. Estão ali Dorival Caymmi (O Samba da Minha Terra), Baden Powell e Vinicius de Moraes (Samba da Benção). Gal Costa, que partiu em novembro, tem sido homenageada nas edições mais recentes do show com Mil Perdões, canção que ela registrou no álbum Baby Gal, de 1983. Um autêntico banquete musical.
Chico se apresenta no Tokyo Marine Hall, em São Paulo, nos dias 26, 30 e 31 de março e 1, 2, 7 e 8 de abril. Depois vai para Salvador, onde toca 28, 29 e 30 de abril, e encerra a turnê no início de junho com performances em Portugal.
Que Tal um Samba? é um espetáculo delicado e certeiro deste que é um dos autores mais importantes da história da música brasileira – não importa sua opinião política.