Best-seller na Itália, publicado em 40 países, M, o Filho do Século, de Antonio Scurati, apresentou um vigoroso painel da ascensão do fascismo entre 1919 e 1924, período que abrange dos primórdios do movimento a seus anos iniciais à frente do governo italiano.

Publicado em 2020, o livro agora ganha sequência em M, o Homem da Providência, que a Intrínseca acaba de publicar no Brasil. O M dos dois títulos não poderia representar outra figura histórica: trata-se de Benito Mussolini, o Duce do fascismo.

Não, não temos aqui uma biografia de Mussolini, nem uma história convencional do fascismo. Scurati define seus livros como  “romances documentais”: obras construídas a partir de pesquisa abrangente e rigorosa, mas dotadas da liberdade narrativa própria da ficção moderna.

O autor foi rigoroso com as datas, os eventos e até com os diálogos (todas as falas reproduzidas no texto vêm de registros históricos). Mas o tratamento dos fatos é literário: o narrador penetra na intimidade dos personagens, desvelando a mente e o coração não só de Mussolini mas de seus colaboradores, opositores – e amantes.

Se O Filho do Século acompanhava a truculência do fascismo em sua trajetória até o poder, O Homem da Providência mostra como Mussolini, já presidente do Conselho de Ministros (o mesmo que primeiro-ministro), venceu sérios problemas de saúde e sobreviveu a atentados enquanto desmantelava, com assustadora rapidez, a democracia liberal italiana.

No trecho abaixo, do primeiro capítulo de O Homem da Providência, o Duce sofre uma excruciante crise de úlcera em fevereiro de 1925, ainda pressionado pelo horror que o assassinato do líder socialista Giacomo Matteotti por sicários fascistas despertou na Itália. Vale observar a forma habilidosa como a narrativa desloca-se da terceira para a primeira pessoa, quando o absolutismo de Mussolini ganha voz plena.

***

O hálito é fedorento, a dor abdominal, oprimente, o vômito, esverdeado, manchado de sangue. Do sangue dele.

As folhas impregnadas de tinta pairam sobre a poça malcheirosa. Impossível ler o jornal. Seu corpo glorioso, inchado de hipersecreções de ácidos e gases, engole o ar e procura oxigênio ao reclinar a cabeça para trás no braço do sofá. À sua volta, porém, todo o cômodo gira em uma dança de feridas abertas sobre a mucosa ulcerada.

Para ser justo, aquele quarto, a alcova em que o chefe do governo reveza encontros com as numerosas amantes, é um lugar pouco acolhedor mesmo quando não fede a vômito tinto de sangue. As paredes são forradas de veludo vermelho e preto; no canto, ficam um genuflexório cheio de santinhos, recebidos das mulheres do povo, e medalhas, doadas pelos homens da guerra. Há aquela grotesca águia-real embalsamada com as asas abertas, capturada no céu de Udine durante um encontro dos integrantes das esquadras; no chão, o carpete, também vermelho, é o preferido para as necessidades fisiológicas do filhote de leoa, e foi uma homenagem de admiradores fervorosos. Uma sala, um dormitório, um quartinho para os serviçais, nem sequer uma cozinha. E, por toda parte, um fedor obstinado de circo. Bem-vindos à morada do mais jovem presidente do Conselho dos Ministros da Itália e do mundo.

A dor o acomete de novo, insiste, surda, constringente. Talvez, com o último suspiro, ele deva pedir socorro. Mas o Duce do fascismo não pode mendigar o socorro de uma sentinela adormecida no corredor nem o de Cesira Carocci, sua empregada úmbria de meia-idade, ignorante como uma cabra, magra como um cravo da crucificação.

De resto, aquela não é a primeira vez. Há semanas, há meses, as crises ressurgem periodicamente no seu esôfago. Anunciam-se com um estranho apetite, uma fome estéril e nauseada, como um casamento frio, como uma gravidez psicológica; depois, começam as flatulências, os arrotos.

Na semana anterior, Ercole Boratto, o motorista de confiança, percebeu o hálito pestilento dele lá do banco da frente. Na primeira curva da Via Veneto, procurou o Líder com o rabo do olho, mas o retrovisor mostrou um espaço vazio. Quando o chofer se virou para o banco de trás, encontrou-o em posição fetal, as mãos apertando a barriga inchada, os célebres olhos reduzidos a fendas, e o estofamento do automóvel sujo de suco gástrico. Foi preciso carregá-lo até a cama, dobrado em dois como um apoplético, com o lenço de um motorista limpando os cantos da sua boca.

Benito Mussolini, o Duce do fascismo, foi reduzido a isso, ao trato digestivo. Nada mais do que isso. Os expurgos e suas consequências. Esse era seu único pensamento. Nosso Senhor Jesus Cristo errou tudo: deveria nos ter feito de outra maneira, esquecendo as tripas. Deveria ter nos criado alimentando-nos de ar, ou então ter se empenhado para que o alimento fosse absorvido sem que mais tarde precisasse ser expelido. Porém, Ele condenou os homens à perene luta para esvaziar o intestino, à via-crúcis da prisão de ventre. E assim, agora, se o Líder das legiões de camisas-negras, o conquistador da Itália e o italiano mais admirado no mundo come no jantar um prato de espaguete com molho de tomate, depois não evacua por três dias. E, quando consegue fazê-lo, se consegue, expele um bolo de fezes enegrecidas, minguadas, ásperas como um caroço de ameixa.

No entanto, ele não fuma, quase não bebe mais, pratica esporte com regularidade, e segue uma dieta rígida. Mas ele sabe o motivo por trás de tudo isso: foram a Grande Guerra e a psicologia das multidões que estragaram sua digestão. Toda aquela carne enlatada engolida nas trincheiras e todas aquelas quentinhas compradas em uma estação qualquer depois de um comício e devoradas às pressas no banco traseiro enquanto o fiel Boratto o levava ao comício seguinte.

Mas, então, para dizer a verdade, a culpa principal é de Giacomo Matteotti, o adversário irredutível, o “socialista envolto em peles”, o filho de proprietários de terras que se sacrificou pelos camponeses miseráveis. Daquele seu cadáver encontrado por uma cadelinha em um matagal da zona rural romana, dobrado em dois, com as pernas viradas para baixo das costas em uma fossa pequena demais, cavada às pressas, com ferramentas inadequadas (uma lima de ferreiro), pisoteada com força e depois sumariamente coberta com a terra que fora recolocada no lugar. Ao corpo de Giacomo Matteotti deve ser imputada a culpa dessa sua patibular prisão de ventre.

(…)

Depois, porém, chegou o dia 3 de janeiro. O dia da revanche. O dia em que Benito Mussolini, ereto sobre o torreão de comando da presidência do Conselho dos Ministros, enfrentou sozinho o Parlamento em borrasca e triunfou. O dia em que Benito Mussolini disse “Eu”. Somente eu — gritou — carrego a responsabilidade política,  moral, histórica pelo que aconteceu. Eu sou a Itália, eu sou o fascismo, eu sou o senso de luta, eu sou o drama grandioso da história. Se há alguém que ousa me enforcar neste galho nodoso, levante-se agora e pegue a haste e a corda.

Ninguém se levantou. Tornou-se uma questão de força, e a democracia se descobriu impotente. Por isso, ela foi subjugada. (…)

Todavia, neste exato momento, mais de um mês depois daquela cartada vencedora, neste sofá sujo, sobre este carpete em que um filhote de leoa defecou, as fisgadas abdominais ainda atazanam suas vísceras. Aliás, a dor se espalha. Originando-se na linha abdominal média, agora se irradia para o ombro direito e, dali, propaga-se por toda a região dorsal e lombar.

Ele tenta se levantar e sentar. Não consegue. Com dificuldade, engole a bile e se entrega ao desmaio.

É tudo culpa da incerteza. Do momento de dúvidas, das demoras, das hesitações, uma hora que dura anos e não passa. É todo um rosário de evasivas. Apesar do triunfo do Líder, os integrantes do seu governo continuam a se sobressaltar a cada farfalhar de folhas. Os apoiadores traiçoeiros fingem uma adesão incondicional, mas depois sonham em ressuscitar as coisas mortas do passado, o sufrágio universal, a representação proporcional, os acordos por baixo dos panos do sistema parlamentar. Os velhos e inconsoláveis moderados se unem ao ato de força da ditadura, mas, depois, sentem saudade das cômodas receitas dos privilégios oligárquicos. É a condenação ao compromisso diário, ao pinga-pinga contínuo, ao congestionamento parlamentar, à política reduzida à administração ordinária, ao menor resultado com o máximo esforço. É o castigo da democracia, e ele paga por isso nesta salada de vômito e sangue. Qual foi o sentido de ter feito a revolução para ver a vida lhe ser roubada dia após dia?

Mas ainda tem coisa pior. O espinho que mais incomoda é que, concluída a revolução, restam os revolucionários. Com o poder conquistado pela força, restam os violentos. Resta a área dos combatentes, a arena dos loucos, a escória dos dias, os facínoras, os deslocados, os delinquentes, os esquizofrênicos, os irregulares, os notívagos, os ex-presidiários, os sindicalistas incendiários, os jornalistas desesperados, os veteranos hábeis no manejo de armas de fogo ou brancas, os fanáticos incapazes de ver com clareza as próprias ideias, os sobreviventes que, acreditando serem heróis consagrados à morte, confundem uma sífi lis mal curada com um sinal do destino. Broncos, medíocres, obtusos, muitas vezes ignorantes, idiotas que devem tudo à beleza da marcha sobre Roma e, pelo resto de suas vidas, não fazem outra coisa a não ser relembrá-la com saudade.

(…)

E, sobretudo, há a ideia da morte como extinção, a morte como apocalipse, como fim do mundo. A grandiosidade trágica da situação é esta: se eu morrer, tudo vai por água abaixo. O regime fascista é, hoje, o modo de ser da Itália, é a própria Itália, mas não resistiria à morte do seu fundador nem por uma hora sequer. O fascismo mostraria os dentes para si mesmo, os fascistas se destroçariam de forma mútua em um piscar de olhos. Diante de nós, esse grande mistério: nenhuma ideia forte jamais poderá se opor ao canibalismo. Só eu, o homem que dá força ao Estado, ao fascismo, só eu posso deter o fim; então, o Estado sou eu, o fascismo sou eu. Eu, o autodidata; eu, o filho da empregada; eu, o estagiário tardio; eu, o filho do povo que, depois dos 40 anos, afoba-se para aprender esportes, um privilégio burguês; eu que, com vontade e perseverança, torno-me um esgrimista temido e um cavaleiro habilidoso com as aulas de Camillo Ridolfi; eu, que aprendo a pilotar um avião, a guiar uma moto, a me manter em pé sobre esquis, a nadar em diferentes estilos; eu, que até aprendo a jogar tênis. Eu, teimosia trabalhadora, disciplina, boa vontade, jantares frugais. Eu cuido de tudo, controlo tudo, desde prédios para escolas até os vazamentos nos aquedutos, eu leio centenas de relatórios sobre todos os aspectos, faço anotações à mão, nas margens brancas, durante horas, páginas e mais páginas, todo santo dia, eu sou o burro de carga nacional; eu, o boi de carro nacional. Então, não posso morrer.

E, por isso, fico atravancado entre enxaqueca e prisão de ventre, prisão de ventre e enxaqueca. Às vezes, parece que meu crânio precisa fisicamente se partir, como neste momento, neste sofá… sim, é como um martelar contínuo… mil problemas disparatados, todos urgentes, e todos batendo e batendo para entrar na minha cabeça… casas em Roma, água na Apúlia, escolas na Calábria e em Messina, uma grande estação em Milão… já tenho a Itália toda na cabeça, como um enorme mapa geográfico, com todos os seus entroncamentos; aqui uma estrada, ali uma ferrovia, uma ponte, com os reflorestamentos, as bacias, os saneamentos, com todo os seus problemas vitais. Então, eu, eu não posso morrer.

A ladainha recomeça: o delito contra Matteotti, o fantasma de Matteotti, o remorso por Matteotti. A oposição a recita sem parar, agarrou-se a ela, desesperada, sem saber ao certo se existe, como os enlutados se agarram ao pranto ritual diante do mistério sombrio da morte.

É verdade, não há dúvida, o deputado Giacomo Matteotti morreu. Os meus fascistas o trucidaram. Mas eu não posso morrer e, portanto, a minha resposta é a seguinte: os tribunais julgarão os responsáveis. Um regime político não pode ser julgado por um tribunal, mas somente pela História.

No fundo, a que se reduz todo esse psicodrama nacional pelo homicídio de Matteotti? A um consumo de litros de tinta, a toneladas de papel impresso, a quilômetros de artigos ponderados que ninguém lê.

A minha posição é forte. Eu sou um homem de batalha. Não arredo pé daqui, para a salvação de todos. Não me abandono à imprensa, eu pertenço à história. A tempestade está prestes a acabar. O bosque voltará à calma. A vegetação rasteira teve de ser incendiada.

Do bulbo duodenal, através do piloro, até a boca, uma nova onda de vômito sobe pela traqueia. O corpo, de maneira instintiva, em um pântano de tremores e suor, busca a posição ereta, a direção do banheiro, a privada.

Benito Mussolini não dá um passo sequer. Mal se levanta e desmorona de repente. O baque surdo de um corpo desfalecido que encontra um piso coberto de carpete vermelho. Essa última lembrança, o adeus com que o Duce do fascismo se despede do mundo.